quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Depois de abuso :Como encaminhar e lidar com criança vítima de abuso sexual.


POSTADO POR  EM OUT 31, 2013 IN TEXTOS E ORIENTAÇÕES | 0 COMENTÁRIOS
 Este texto é dirigido às famílias e profissionais que lidam com criança ou adolescente, vítima de abuso sexual. Em outra exposição -  “A Prevenção do Abuso  Sexual contra Crianças” – apresentamos estratégias legais e práticas para evitar o mal.
É preciso ter em mente que, mesmo ao lidar com a violência já praticada, a atuação da família e dos profissionais é de grande importância. A vítima pode sofrer novas violações de direitos se não  houver cuidados especiais ao lidar com o caso.
Caso real – A aluna de 13 anos de idade foi vítima de tentativa de estupro na escola. O funcionário a agrediu fisicamente, mas foi preso antes que pudesse consumar a violência sexual. Os professores que lidaram com o caso foram muito descuidados e revelaram os detalhes para outras pessoas. Em decorrência da indevida divulgação dos fatos envolvendo a adolescente, disseminou-se na comunidade que ela realmente havia sido estuprada, o que não era verdade. Em virtude da humilhação pública, a adolescente teve que se mudar para outra cidade.
 Em muitas situações, a pretexto de obter a condenação do autor da violência sexual submete-se a vítima a uma série infindável de constrangimentos e humilhações.
Caso real – A criança de 4 anos de idade queixou-se com os pais de uma dor no “bumbum”. Ao examinar o filho, perceberam que havia escoriações e marcas no ânus da criança. Imediatamente levaram o filho para a delegacia, onde lavraram ocorrência policial acusando um determinado professor da escola onde o filho estudava. Em seguida, submeteram a criança, que chorava muito pela situação, a exame médico-legal extremamente constrangedor.
 Em muitos casos, não se recomenda sequer encaminhar o caso às autoridades, pois o encaminhamento legal pode ser mais danoso do que o próprio abuso sofrido.
Caso real – A criança de 8 anos foi corrompida por adolescente de 16 anos, que mostrava revistas de sexo explícito à menor, para induzi-la a fazer sexo com ele. Embora abuso mais grave não tenha ocorrido, nem qualquer outra forma de contato físico libidinoso, não recomendamos, o encaminhamento legal deste caso à polícia, pois a vítima sofreria indevida violação de direitos em consequência da investigação policial – depoimento, acareação, etc. . A exposição pública de sua intimidade e imagem, assim como o despreparo das autoridades para colher o depoimento da criança não aconselharam o encaminhamento legal deste caso, sobretudo porque não houve grave ameaça nem violência física contra a vítima.
 O fato de não encaminhar o caso às autoridades não significa que o autor não possa ser investigado. Neste caso real, os pais do adolescente foram informados da situação, e trataram o caso com muita seriedade, inclusive submetendo o adolescente a tratamento psicológico. Mesmo quando o abuso ocorreu há anos e o caso não foi encaminhado devidamente na época dos fatos, é possível alcançar a punição do autor, se houver cuidados especiais.
Caso real – Três crianças foram abusadas sexualmente por um tio. Os abusos ocorreram quando tinham entre 8 e 10 anos de idade. 5 anos depois, já adolescentes, denunciaram o abuso praticado aos pais. O caso foi encaminhado à justiça, e o autor dos abusos condenado a 19 anos de prisão.
 Quando não é mais possível a punição do abusador, ou as provas forem muito fracas, é possível alertar as autoridades policiais sobre a pessoa. É comum ouvirmos relatos de adultos, narrando que foram vítimas de abusos sexuais na infância ou adolescência. Embora muitas vezes não se possa mais punir o autor da violência, é possível realizar uma investigação preliminar, para apurar se continua a praticar abusos contra crianças. Infelizmente, muitos abusadores são reincidentes nesta prática criminosa.
Por estas razões, é fundamental lidar com equilíbrio e sabedoria ao cuidar de casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes.
 1. O abuso sexual realmente ocorreu ?
Pela própria natureza do tema, as pessoas são levadas naturalmente a conclusões precipitadas ao lidar com situações de suspeita de abuso sexual contra crianças. O natural zelo pela proteção da infância, a revolta contra pedófilos, a influência da mídia, entre outros fatores, podem instigar famílias e profissionais – professores, policiais, etc. – a julgamentos precipitados. Por esta razão, é muito importante analisar com equilíbrio os diversos indícios e provas.
Caso real – Ao realizar o exame pericial em criança que teria sido vítima de abuso sexual, o médico afirmou para o pai: “seu filho sofreu abuso sexual”.
 Isto é um erro. O que o legista pode afirmar é que o ânus da criança apresenta escoriações ou ferimentos compatíveis com a introdução de objeto contundente ou pênis. Mas não pode afirmar que houve abuso sexual, a menos que tivesse identificado sêmen na criança, o que não foi o caso em comento.
 Sabemos que muitas crianças podem ter problemas com a evacuação em decorrência de fatores emocionais ou biológicos. Pois bem, uma criança com fezes muito sólidas pode apresentar lesões anais decorrentes desta condição. A um observador desatento, estas lesões podem constituir prova irrefutável de abuso sexual. O que não é verdade neste caso.
A constatação médica de ferimentos no corpo da criança ou adolescente – especialmente no ânus ou região genital – é muito relevante. Mas não é suficiente, muitas vezes, para comprovar o abuso sexual. É preciso colher o maior número possível de informações (testemunhas, depoimento da vítima e familiares, documentos, fotos, ocorrências, etc.) que possam auxiliar na comprovação do crime e identificação do autor.
2. Cuidados estratégicos ao constatar o abuso sexual
Uma vez constatada a ocorrência do abuso sexual, é preciso adotar as seguintes atitudes:
a) Preservar a intimidade da vítima, não comentando sobre o caso com terceiros, inclusive familiares.
Somente os profissionais e familiares que realmente irão cuidar do caso devem ter acesso às informações sobre o abuso. Infelizmente, especialmente nos momentos seguintes à descoberta da violência sexual, muitos pais comentam com  familiares e amigos sobre o caso envolvendo o filho. Além de prejudicar as investigações (imagine se o autor do abuso é alguém da família), esta atitude causa grave dano à imagem e à intimidade da criança ou adolescente. É fundamental orientar os pais da vítima a não comentar sobre o caso com terceiros, inclusive familiares.
 b)Realizar os exames médicos o quanto antes.
Nos casos em que é necessário o exame médico da vítima sugerimos duas alternativas: a) inventar um estória cobertura e induzir a criança a participardo exame como se fosse uma brincadeira; ou b) ministrar um calmante na vítima, sempre com orientação médica, para que se possa realizar o exame com a criança adormecida, para evitar realizar o exame a força. 
 c) Apurar como a vítima compreendeu (percebeu e entendeu) a violência sofrida.
É fundamental ouvir a vítima, deixar que ela fale espontaneamente sobre a situação vivida, sem interferências. O objetivo maior é descobrir como a criança ou adolescente elaborou em sua mente a situação vivida. Neste sentido, não podemos pressupor que houve danos graves unicamente com base no fato de um abuso grave ter sido praticado.
Caso real – A menina de 12 anos comentou com as amigas como o pai brincava com ela. “Tira minha roupa, começa a brincar comigo, põe seu pirulito na minha boca, e depois faz muitas coisas legais.” Era uma relação sexual. Embora vítima de um grave abuso sexual, a criança entendia o abuso como uma brincadeira.
Caso real – O menino de 2 anos de idade foi abusados sexualmente por um adulto, namorado da babá que dele cuidava. Embora a violência tenha sido grave, a vítima entendeu como “a brincadeira do cachorrinho que o tio fazia.” Por causa da pouca idade e da forma como o abuso foi praticado, a criança o compreendeu como uma brincadeira.
Nos dois casos, as crianças conseguiram lidar com a violência sofrida, sem danos psicológicos graves. Isto não diminui nem um pouco a gravidade do abuso praticado, mas é um importante referencial para o acompanhamento psicológico e sociofamiliar da vítima.
 3. A prevenção de danos pós-abuso à vítima
É necessário evitar ao máximo que a vítima do abuso sexual seja exposta a novas situações de violação de direitos, ainda que a pretexto de investigar o caso ou punir o autor da violência. Por isto, orientamos as famílias e profissionais que lidam com vítimas de abuso sexual a seguir as seguintes orientações:
  • A vítima (sempre) deve ser ouvida em ambiente reservado e por profissional especialmente treinado  para lidar com vítimas de violência sexual.
  • Jamais expressar na presença da vítima o desespero ou tristeza pelo abuso sofrido. Isto se aplica especialmente à família, professores ou pessoas que convivem com a criança. Muitas vítimas sofrem um novo trauma quando são expostas ao sofrimento dos pais pelo abuso praticado. Elas conseguiram lidar com a violência sofrida – por mais incrível que possa parecer – mas sofrem ainda mais ao ver o desespero ou tristeza da família.
  • Se a vítima percebeu a gravidade do abuso sofrido e não soube lidar emocionalmente com a situação, é importante expressar a tristeza para a criança, como forma de empatia1.
  • Preservar a intimidade da vítima e de sua família. Não conversar com ninguém sobre o caso. Os fatos somente devem ser comunicados ou revelados a pessoas de confiança e que vão participar do encaminhamento ou tratamento do caso.
  • Cuidado: infelizmente, ao levar o caso a autoridades geralmente a imprensa fica sabendo de todos os fatos. A revelação da intimidade das pessoas e detalhes do caso a jornalistas é uma prática muito comum.
  • Procure o auxílio de pessoas competentes e confiáveis. Uma autoridade – conselheiro tutelar, delegado de polícia, promotor de justiça – pode ser um bom conselheiro em casos suspeitos. Se você ainda não tem confiança nela, não precisa mencionar os dados do caso real, apenas apresente os fatos, sem dar nomes ou identificar as pessoas. Lembre-se a situação ainda está sendo investigada, e a suspeita pode não se confirmar. É preciso ter cuidado para não acusar injustamente uma pessoa inocente. O fundamental é proteger a criança ou adolescente da situação de risco.
  • Não acuse suspeitos ao encaminhar um caso às autoridades. A ênfase deve ser dada à situação de risco da criança ou adolescente e às provas ou indícios obtidos: marcas no corpo, alterações no comportamento, depoimento da vítima ou testemunhas, imagens ou fotos, etc.. Não aconselho acusar prováveis suspeitos, especialmente por escrito, pois esta função é das autoridades (polícia, ministério público). Agindo assim, quem encaminha o caso fica melhor protegido, em especial, contra retaliações dos envolvidos.
  • Proponha ou ajude a delegacia e conselho tutelar de sua cidade a construir uma salinha para crianças, com o objetivo de atender as vítimas ou testemunhas de crimes, inclusive a realização de depoimento sem dano. O depoimento sem dano consiste na coleta de depoimento de criança ou adolescente sobre abuso sexual (vítima ou testemunha) com o máximo de proteção contra humilhações ou constrangimentos. Como todos sabem, o simples relato da violência sofrida ou testemunhada pode gerar profunda dor.
Muitas crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual ficam mais revoltadas com os pais ou professores que duvidam dela ou nada fazem ao saber do abuso, do que com o próprio autor da violência.
Conclusão
O encaminhamento correto e cuidadoso dos casos de abuso sexual é muito importante. Infelizmente, muitas vítimas são expostas a novas violações de direitos a pretexto de punir o autor da violência. Crianças e adolescentes podem ter habilidades pessoais para lidar com a violência. O abuso sexual praticado nem sempre terá repercussão psicológica grave. A humilhação e preconceito decorrente da exposição de sua intimidade pode causar mais sofrimento à vítima do que a violência sofrida.
Guilherme Schelb, Promotor de Justiça da Infância em Brasília (1992-1995), especialista em temas da infância e juventude e palestrante em temas da prevenção da violência infantojuvenil há mais de 20 anos.
1Empatia é a capacidade de compreender o sentimento de outra pessoa, imaginando-se  estar em seu lugar.

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