Os números são estarrecedores. Ainda assim, o Ministério da Saúde não tem nenhum protocolo destinado aos serviços brasileiros com recomendações para para prevenir abusos em suas dependências ou como receber e lidar com denúncias contra seus funcionários. Embora uma norma técnica e uma lei estabeleçam parâmetros para o atendimento de vítimas de violência sexual, os textos não têm protocolos específicos para os casos de pessoas abusadas nos serviços que deveriam atendê-las. A Organização Mundial da Saúde tampouco tem orientações nesse sentido.

Nesse limbo, reina a negligência. “Não é apresentada a essa mulher a ouvidoria, ela não é orientada sobre nenhum dos outros serviços da rede de atendimento a mulheres que passam por situação de violência sexual e elas são desmotivadas a denunciar”, me disse a coordenadora do Núcleo dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo, Paula Sant’Anna. Jogar a culpa na vítima é um dos caminhos para tentar impedir a denúncia: “[Há] uma desqualificação do tipo: ‘Você está mentindo, não tem porque esse médico fazer isso, você vai sujar a reputação dele'”.

Em 22 de janeiro, a advogada Maira Pinheiro – sócia de Ana Freitas, responsável pelo caso de Soraya – se reuniu com a equipe jurídica do Hospital Santa Catarina para tratar da ocorrência. “A coisa que a gente mais bateu na conversa foi: ‘Como vocês não têm um protocolo pra esse tipo de situação?'”, me contou a advogada. “Não é que isso nunca aconteceu aqui, é que vocês nunca ficaram sabendo”, disse na reunião.

‘Não houve nenhuma ação por parte do hospital de acolhimento ou de tomada das medidas necessárias.’

No Brasil, o registro de casos de violência sexual que chegam aos serviços de saúde é obrigatório, e o Ministério da Saúde recomenda aos estabelecimentos medidas como o acolhimento das sobreviventes; a solicitação de exames laboratoriais; a disponibilização da pílula do dia seguinte; a prevenção de DSTs e o encaminhamento da sobrevivente a serviços de acompanhamento psicológico. “Não houve nenhuma ação por parte do hospital de acolhimento ou de tomada das medidas necessárias”, me disse Maira. “Eles agiram como se nunca tivessem ouvido falar numa situação dessas.”

A defensora Paula Sant’Anna explica que há duas coisas singulares no caso de mulheres violentadas em serviços de saúde: diferentemente das vítimas que chegam aos estabelecimentos por conta da violência sexual, essas mulheres não são sequer caracterizadas como vítimas. Então, o abuso não é registrado no prontuário e acolhimento devido não é feito, prejudicando a saúde da mulher e a produção de provas. E, muitas vezes, quando a violência é cometida por um médico, elas pedem ajuda a outros funcionários que, hierarquicamente, estão abaixo do abusador – e não se sentem confortáveis em tomar medidas contra eles.

A justiça já recebeu a denúncia de Soraya, e o processo judicial tem um longo trâmite pela frente. Como os abusos cometidos por profissionais de saúde tendem a acontecer em locais fechados, é raro haver testemunhas. E, se em casos de abuso a palavra do homem costuma valer mais do que a de uma mulher, quando o acusado é um profissional de saúde, o desequilíbrio de poder é ainda maior. “Essa questão hierárquica, do saber da medicina, também estruturalmente está muito presente na nossa sociedade”, me disse a defensora Paula Sant’Anna. O fato de os peritos em um processo envolvendo profissionais da saúde serem da mesma área é outro problema. “É difícil um outro médico conseguir apontar que o colega atuou ou com algum erro, ou com alguma negligência, ou com uma violência.”


Ilustração: Ana Persona/The Intercept Brasil

Abusar de mulheres não custa licença

Procurei a assessoria dos Conselhos Federais de Enfermagem, Medicina, Odontologia e Psicologia para descobrir quantas denúncias de violência sexual contra profissionais da saúde foram recebidas entre 2014 e 2019 e quantas haviam resultado na cassação de registro do acusado.

A falta de transparência nos órgãos é evidente: o Cofen informou que apenas seis profissionais tiveram seus registros cassados em mais de cinco anos e não passou o número de denúncias recebidas. Já o CFO e o CFP afirmaram que não têm esses dados, e o CFM sequer respondeu aos contatos da reportagem.

Nos conselhos regionais de São Paulo, tivemos retorno apenas das categorias de enfermagem e medicina. Entre 2014 e 2015, foram recebidas 42 reclamações no Conselho de Enfermagem e só dois profissionais perderam o registro – 4,76% do total. No mesmo período, foram recebidas 280 denúncias no Conselho de Medicina e 29 médicos tiveram o registro cassado. Alguns dos cancelamentos podem ser resultado de denúncias apresentadas antes de 2014, e há denúncias recebidas nesses cinco anos que ainda não foram julgadas.

A falta de produção de dados consistentes sobre violência sexual cometida pelos profissionais da saúde é um sintoma da grave negligência com que o tema é tratado pelos conselhos. Afinal, para tomar as medidas apropriadas de prevenção, acolhimento de vítimas e sanção de agressores, é preciso mensurar o tamanho do problema. Ao deixar de fazer isso, os conselhos falham com as mulheres e impedem a fiscalização cidadã de sua atuação.

As porcentagens dos poucos dados enviados ao Intercept, no entanto, indicam que a violência sexual não é devidamente punida. E o problema não é local: nos Estados Unidos, uma extensa investigação do Atlanta-Journal Constitution revelou que mais da metade dos 2.400 médicos punidos por violência sexual entre 1999 e 2016 continuaram com o direito de praticar a profissão.

*Nomes alterados a pedido das mulheres para preservar suas identidades.

Atualização: 1 de maio, às 14h33

Este texto foi atualizado para modificar os nomes fictícios das vítimas (tiramos os sobrenomes) e deixar mais claro que se tratam de pseudônimos.

Atualização: 19 de junho, às 15h48

Três meses depois de responder a nosso pedido de acesso à informação, a Secretaria do Estado da Justiça e Segurança Pública do Amapá informou que os dados que havia enviado ao Intercept estavam incorretos. O título do documento enviado em março pela Secretaria afirmava que os números faziam referência apenas a casos de violência sexual cometidos em serviços de saúde. Mas, em junho, o órgão se corrigiu, afirmando que os dados se referiam ao total de crimes sexuais registrados no estado. Retiramos, então, as informações referentes ao Amapá e atualizamos o texto com as novas somas.