sábado, 26 de setembro de 2020

Você atenderia a um pedido de socorro de quem pode traumatizar uma criança?

 Pedófilo procura ajuda

Você atenderia a um pedido de socorro de quem pode traumatizar uma criança?

Danilo Baltieri, psiquiatra

Marcelo* já tinha sentido aquele desejo durante a adolescência. A vergonha o tomava sempre que tal sensação surgia. Ele tentava ignorar. Mas, depois dos 40, casado e pai de uma menina de oito anos, o que antes parecia apenas estranho e efêmero passou a assombrá-lo.

Todas as semanas a filha levava uma turma de coleguinhas para brincar em casa. Marcelo não tirava uma delas da cabeça. Ele chegou a mudar sua rotina no trabalho para voltar ao lar mais cedo e observá-la. A vontade de se aproximar aumentou. O desejo de tocá-la o deixava perturbado. Antes que algo mais grave acontecesse, a consciência daquele pai de família falou mais alto.

Marcelo levou mais de 20 anos para admitir que sua atração por crianças pré-púberes não era passageira. Ele se sentia uma aberração, tinha vergonha e nojo de si mesmo. Mas decidiu que faria de tudo para jamais tocar em uma criança. Ele foi procurar ajuda. Marcelo é pedófilo.

Todos os dias, milhares de Marcelos sentem desejo por crianças. Pelas colegas das filhas de oito anos. Pelos alunos da escola do bairro. Pelos frequentadores do parquinho, da praça de alimentação do shopping. Por uma imagem na tela do computador. Por uma sobrinha, prima ou até mesmo sua própria filha.

Por mais repulsiva que seja a ideia de alguém molestar uma criança, ter desejos por menores de idade não é crime previsto em lei. A pedofilia é uma doença sem cura e que precisa de tratamento.

Então pedofilia não é crime?
Não. É o termo médico que se refere ao desejo sexual por crianças.

Nos livros médicos, o transtorno pedofílico está no grupo das parafilias – comportamentos sexuais que desviam do que é considerado normal, como zoofilia ou necrofilia.

Mas todo pedófilo é criminoso?
Não. Ele só será acusado de um crime se colocar esses pensamentos em prática.

O que é crime nesse caso?
Consumo de pornografia infantil e atos sexuais com menores de 14 anos, definidos no Código Penal brasileiro como estupro de vulnerável.

E todo abusador de crianças é pedófilo?
Não de novo! Pesquisas feitas por médicos em países como Brasil, Canadá e Estados Unidos dizem que de 20% a 30% dos abusadores presos são diagnosticados com o transtorno.

Qual o percentual de pedófilos que viram abusadores, então?
Não há como saber, já que a maioria não relata sua condição e não chega a ser diagnosticada.

Se pedofilia é doença e não tem cura, o que fazer com pedófilos?
Tratamento médico e psicológico. Segundo os especialistas ouvidos pelo TAB, eles dificilmente vão conseguir superar esse quadro sozinhos. A ajuda da família é fundamental.

É sobre a necessidade desse apoio, a fim de evitar abusos contra crianças, que vamos falar a partir de agora.
 

“Os portadores do transtorno pedofílico constituem uma população heterogênea. Desde aqueles com nível bem leve, que não atuam e são mais fáceis de serem tratados, até o nível catastrófico – quando chega ao ato sexual, muitas vezes com fantasias sádicas”, afirma o psiquiatra Danilo Baltieri, coordenador do ABSex (Ambulatório de Transtornos da Sexualidade) da Faculdade de Medicina do ABC, referência no tratamento de parafilias no Brasil.

Baltieri já teve contato com homens – e algumas mulheres, mas em número inexpressivo – com todos os níveis de pedofilia, de diferentes classes sociais, estados civis e orientações sexuais em seu ambulatório em Santo André (SP). Ele conta alguns detalhes do tratamento – que pode durar a vida inteira, já que não há cura para pedofilia –, mas não de casos específicos. Quem chega ao ambulatório só é diagnosticado como pedófilo depois de passar por entrevistas, testes e avaliações neuropsicológicas feitos por uma equipe multidisciplinar.

Diagnosticados, os pacientes são inseridos em terapia cognitivo-comportamental de grupo, com dois terapeutas e até dez pessoas – proporção usada em tratamentos semelhantes em países como EUA, Canadá e Itália. Com outros pedófilos falando sobre o assunto no mesmo ambiente, eles não se sentem isolados e há menor risco de relatos mentirosos aos médicos e psicólogos. Nas sessões, eles trocam informações e técnicas para evitar situações de risco, frear a urgência sexual e adequar os pensamentos.

Parte do tratamento de pedófilos tem semelhanças com o de dependentes químicos. Como um viciado em drogas ou álcool, é preciso se manter longe do que desperta o desejo e nunca, em hipótese alguma, permanecer sozinho em um ambiente com uma criança. A família é fundamental nesse controle.

“O principal remédio é monitoramento de comportamento. Não se trata um dependente químico o colocando sozinho numa mesa com fileiras de cocaína, olhando para a droga até se convencer de que não pode usar”, compara o psicólogo Antonio de Pádua Serafim, coordenador do NUFOR (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

Em seu ambulatório, Serafim e sua equipe atendem a vítimas de crimes envolvendo transtorno mentais, inclusive de abuso sexual. Os agressores chegam por determinação judicial. Em quase 15 anos, apenas dois pedófilos se apresentaram voluntariamente – um deles foi Marcelo, cuja história está no começo deste TAB.

Para parte dos pacientes, a masturbação com o pensamento em crianças é uma alternativa para lidar com o desejo sem praticar violência. Os especialistas são contra. Acreditam que a fantasia pode ser o primeiro passo para a prática. “Quando [o pedófilo] experimenta o ato de visualizar uma criança, tem um efeito de recompensa muito grande. Ele vivencia uma situação emocional, ativa áreas cerebrais de memória, de prazer, que têm baixo controle racional”, afirma Serafim.

Precisa de um controlador externo, como um dependente químico. Por isso é importante a presença da família no tratamento. A minha experiência clínica diz que sozinho não vai conseguir

A falta de domínio sobre os desejos e o sofrimento que isso causa muitas vezes vêm acompanhados de outros tipos de transtornos ou vícios – de 40% a 50% têm algum problema com álcool ou outras drogas, enquanto de 30% a 40% têm algum transtorno de personalidade, diz Baltieri. Esses males são tratados com terapia e antidepressivos. Quando essa estratégia não funciona, é possível ainda recorrer a medicações hormonais.

“Em doses [de hormônios] mais baixas possíveis, para diminuir o impulso, mas não ter o efeito da perda de libido. O objetivo não é que esse indivíduo não tenha mais nenhuma relação sexual, mas que seja o mais feliz possível tendo relações com adultos”, afirma Baltieri. Segundo o médico, de 2% a 5% do total de portadores precisam desse tipo de medicamento. “Nos Estados Unidos, eles falam de 5% a 10%. No ambulatório, hoje ninguém toma medicação hormonal”, completa.

Os detalhes dos tratamentos dependem das características psicológicas e da rotina dos pacientes. Como outros aspectos da sexualidade, a pedofilia começa a se manifestar na adolescência. Assim, quanto antes o pedófilo se reconhecer e procurar tratamento, menos sofrimento para ele e menos risco de possíveis abusos contra crianças.

Ambulatórios como o do ABC e do Hospital das Clínicas da USP – ambos criados em 2003 – são exemplos raros de atendimento médico e psicossocial no Brasil. Em muitos casos, é na internet que os pedófilos que desejam tratamento encontram vozes semelhantes.

Nos Estados Unidos, a discussão tomou forma em sites e fóruns como o Virtuos Pedophiles, criado em 2012 por dois pedófilos adultos, que se casaram e tiveram filhos. Com o discurso de não violência, eles propõem troca de informações com pedófilos que se comprometam a jamais praticar nenhum tipo de ato sexual com crianças.

Ethan Edwards, um dos criadores do site, diz que o “círculo vicioso” com o qual as pessoas veem os pedófilos e como o grupo aceita esse julgamento reforça a ideia de que pedófilos e abusadores estejam “na mesma caixa”. Para ele, os que não atacam crianças tentam permanecer escondidos por medo do ódio da sociedade, que acaba sabendo apenas daqueles que se tornaram criminosos.

Eu tinha 50 anos quando percebi que o que eu sentia por meninas novas era incomum. Que havia um componente sexual em relação a imagens e finalmente com garotas reais. Mas é o que você faz que importa, e vou continuar tratando as meninas com respeito e regras como sempre tratei

Ethan Edwards, pedófilo americano, fundador do site Virtuos Pedophiles

Falar disso na internet ajuda outros pedófilos a se reconhecerem e terem coragem de contar sua história, mesmo que anonimamente. “Se as únicas pessoas de quem você (pedófilo) tem notícia sobre são aqueles que violaram a lei, você assume que não haja outras [que não cometem crimes], então acredita que está condenado a infringir a lei também. É fundamental para os jovens pedófilos saber que outras pessoas conseguem viver com essa condição e ter vidas produtivas respeitando a lei”, diz Edwards.

No site de compartilhamento de textos Medium, uma área denominada “Pedophiles about Pedophilia” ("Pedófilos sobre Pedofilia, em tradução livre para o português) reúne relatos sobre o tema. Usando pseudônimos, portadores do transtorno do mundo inteiro – e pelo menos um brasileiro – contam suas descobertas, angústias e truques para se manter longe das tentações.

“Apesar de sentir desejo sexual, não significa que eu irei ceder a esse desejo. Não quero abusar de nenhuma criança, já que entendo o grande potencial que tal ação tem de lhes causar mal, algo que dure uma vida inteira. Todos, sejam pedófilos ou não pedófilos, sentimos desejos sexuais por alguém, mas não por causa disso agimos por impulso sobre esses desejos. Controle sobre tais desejos é perfeitamente possível”, escreveu o brasileiro identificado como Lucas P. Folle em texto publicado no Medium em 2016.

Eu sou um pedófilo. Eu não sou um monstro. Eu tenho a atração, mas eu não faço nada com ela. Eu nunca abusei sexualmente de uma criança e nunca o farei. Eu não assisto a pornografia infantil e nunca o farei. Eu obedeço as leis, respeito as leis e respeito a posição da sociedade sobre isso. Eu entendo e concordo com ela

Todd Nickerson, pedófilo americano

Você já deve ter visto a frase acima em debates, campanhas, capas de jornais e operações policiais. Há alguns anos, o conceito psiquiátrico cruzou a fronteira dos livros – onde as primeiras definições apareceram no século 19 – e prontuários médicos para descrever crimes sexuais contra crianças em boletins de ocorrência, noticiário policial e até mesmo decisões judiciais.

No Brasil, ainda há poucos estudos sobre o assunto. O doutor em sociologia Herbert Rodrigues, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e autor de "A pedofilia e suas narrativas: uma genealogia do processo de criminalização da pedofilia no Brasil”, analisou o arquivo de jurisprudência do Estado de São Paulo e encontrou um aumento significativo do termo pedofilia em decisões da década de 2000 até hoje.

Segundo a pesquisa, as primeiras condenações de crimes de abuso sexual infantil usando os termos são de 1997 e 1998. Entre 1997 e 2013, foram 417 sentenças judiciais com as palavras “pedofilia” e “pedófilo” registradas no Estado. A existência de uma Delegacia de Polícia de Repressão à Pedofilia, também em São Paulo, e de uma CPI da Pedofilia, criada no Senado para analisar crimes em vários estados brasileiros entre 2008 e 2010, reforçam a ideia de que, na prática, ela já foi criminalizada.

A confusão semântica aumenta o estigma e tira o foco de questões que deveriam ser tema de toda a sociedade, não apenas do direito ou da medicina, na opinião do sociólogo. “A psiquiatria está correta em tratar, mas é preciso entender a sociedade em que o fato está inserido. Como nós, brasileiros, entendemos a sexualidade adulta e como entendemos a infância?”, questiona Rodrigues.
 

O sociólogo acredita que pensar em pedófilos automaticamente como criminosos impede que os sistemas judiciário e de saúde saibam lidar com o assunto de maneira apropriada, além de ser um prato cheio para o discurso de ódio. “Ninguém concorda com o abuso, mas há um risco de se criminalizar o desejo. Você pode destruir pessoas que teriam capacidade física e intelectual produtiva, impedindo que possam desempenhar seu papel na sociedade. Lidar com essas questões, em 2017, num mundo marcado pelo ódio e polarização, é muito difícil. Precisamos, antes de tudo, quebrar o tabu, quebrar o silêncio”, avalia.

O procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo Eduardo Del-Campo também acredita que tratar pedofilia como crime é focar na punição, deixando de lado a prevenção e o verdadeiro combate aos crimes relacionados. “É preciso separar o joio do trigo. Todas as vezes que passamos, na aplicação da justiça, do técnico para o emocional, cometemos injustiças. Nem toda pessoa que tem atração por criança é um ser perigoso, mas poucos acabam procurando espontaneamente o tratamento”, diz o procurador.

Ressaltando que não quer entrar em uma queda de braço com a Justiça e que não adota uma postura “paternalista”, o psiquiatra Danilo Baltieri reforça esse coro: “Eu não sou contra a pena de prisão. A lei deve servir para impor limites. Fazer sexo com crianças é crime hediondo. A gente é contra a falta de tratamento. É mais barato tratar do que prender”.

É um tema que não entra nas escolas, nos pediatras e assistentes sociais, nos conselhos tutelares. Não é tema da família porque é um tabu. A criança fica desamparada

Herbert Rodrigues, sociólogo

Na outra ponta dessa questão, as crianças circulam em ambientes erotizados e, quando se tornam vítimas de abuso sexual, têm pouco ou nenhum espaço para falar sobre o que aconteceu. O sexo está na TV, na moda, na música, nas revistas, na internet, mas a discussão sobre prevenção de abusos não chega até elas.

Para a psicóloga Jane Felipe, o combate à violência contra a criança passa pelo combate ao que ela chama de “pedofilização” da sociedade. “Existem diferenças muito grandes no que a medicina chama de pedofilia e o que eu chamo de pedofilização. Usar [o termo] como se fosse só uma doença é um desserviço contra o combate à violência, especialmente contra as meninas. Há uma construção de olhar pedófilo, de olhar para as meninas com desejo. Enquanto se colocam leis para protegê-las, disponibilizam os corpos infantis na moda, na música na TV. Desde cedo elas são levadas a acreditar que só é importante se for desejada”, analisa.
 

Há uma perpetuação de uma conduta sexualizada na infância. Às vezes, os pais deixam as crianças muito expostas, achando que estão estimulando a autonomia e a independência, mas é uma negligência

Antonio Serafim, psicólogo

Rodrigues vê a mesma contradição, com uma “infantilização do adulto e uma erotização da infância”. Nesse contexto, diz o sociólogo, o assunto ainda é tabu nos ambientes frequentados pelas crianças e onde elas não têm voz. “Existe um discurso angelical em torno da criança, puritanista, de uma infância preservada, e quando você vê na prática ela está sendo erotizada. Não há políticas públicas para tentar fortalecer os laços de atendimento e prevenção de ataques. Não se sabe descrever [os atos sexuais], o juiz não legitima a fala, a família desconfia, acha que ela está inventando. Não há preparo de um lado nem do outro”.

Experiente no atendimento do vítimas de abuso no ambulatório do Hospital das Clínicas, Antonio Serafim vai além: para avançar na prevenção, é importante estudar o comportamento dos pedófilos e dos agressores. “Como se faz prevenção se não se entende a conduta do agressor? Como fazer campanha preventiva se não sabe como é que ele aborda, como escolhe, como funciona? Com base nesses dados, você conseguiria orientar a população. Aí tem aquelas campanhas terríveis com ‘Pedofilia é crime’. Não, pedofilia é doença. Abuso sexual é crime”.

*nome alterado

 

Fonte: tab.uol.com.br

Pedófilo procura ajuda

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