quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Quebrando o silêncio sobre o abuso sexual


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Quebrando o silêncio sobre o abuso sexual

Autores: Evelyn Eisenstein1
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Abuso sexual significa qualquer ato ou contato sexual de adultos com crianças ou adolescentes, com ou sem o uso de força ou violência, que pode ocorrer num único ou em vários episódios, de curta ou longa duração, e que resulta em danos para a saúde, a sobrevivência ou a dignidade da vítima. Sempre permanece no ar uma ameaça ou formas verbalizadas ou não-explícitas de dominação sexual do(a) menor, o que envolve um silêncio em torno do perpetrador ou da família ou do fato em si. Esse trauma pode se tornar um tabu, que não é denunciado, sendo difícil de ser questionado, avaliado ou interrompido pelo profissional de saúde que venha a suspeitar desse diagnóstico.

O abuso pode se manifestar através de maustratos, exploração sexual ou comercial, molestamento, exibicionismos, manipulação, masturbação, estupro, contatos orogenitais, inserção de objetos ou penetração vaginal ou retal, quando a vítima é forçada por medo, ameaças ou violência física. Muitas vezes, a criança ou o adolescente é intoxicado com medicamentos psicoativos, anestésicos, drogas ou bebidas alcoólicas, e pode ficar semiconsciente ou em estado de estupor, ocorrendo dissociações psicoativas e desintegradoras, com traumas agudos, que poderão se tornar sintomas crônicos de problemas clínicos, com dificuldades de adaptação psicossocial.

Revelar para um médico, psicólogo ou profissional da área de saúde o que está ocorrendo ou revelar a situação traumática para algum familiar de confiança às vezes se torna obstáculo difícil de ser superado. Isso estabelece um círculo vicioso de episódios de abuso, que se alternam com silêncio, omissão ou conluio, e mais ameaças de terror e traumas. Torna-se necessário e importante quebrar este silêncio e intervir para proteger a criança ou o adolescente vitimizado ou abusado sexualmente.

Com freqüência, a criança ou o adolescente aparece na consulta ou é atendido em serviços de emergência, ou em hospitais públicos, com queixas ou marcas da violência, ou com problemas psicossociais, como fuga de casa ou distúrbio escolar, ou com queixas de insônia, pesadelos, corrimentos genitais, gravidez, lacerações ou equimoses. Muitas vezes as queixas são vagas, como cefaléias ou dores abdominais ou tonteiras.

Toda suspeita de abuso sexual, maus-tratos ou negligência deverá ser avaliada corretamente, e os dados da história familiar, pessoal e social devem ser obtidos com clareza de detalhes e informações pertinentes. É importante estabelecer uma relação de confiança e apoio emocional com o médico ou profissional de saúde para que a busca de sinais clínicos, objetivos e corporais do abuso faça parte da avaliação integrada. Muitas histórias e fantasias ou verbalizações que parecem desconexas podem ser disfarces de atos incestuosos, de pedofilia ou de tentativas de abuso sexual, mas também muitos silêncios podem ser interpretados como dificuldade de expressão da dor emocional e de outros traumas físicos e psíquicos associados.

Quebrar o silêncio é estabelecer um canal de comunicação, de diálogo, e uma nova relação de confiança envolvendo o profissional de saúde que saiba ouvir e observar tudo o que a criança ou o adolescente tenta dizer. É estabelecer, com palavras simples, diretas, mas francas, cordiais e, principalmente, compreensivas para cada etapa de desenvolvimento e maturidade, um elo de confiança e uma ponte mais saudável para o relacionamento humano e o apoio social. Quase sempre essas situações são complicadas ou constrangedoras também para a família, quando envolvem aspectos policiais ou jurídicos.

Devido a implicações legais, todos os dados devem ser corretamente avaliados e sempre obtidos com o consentimento verbal e escrito da criança ou do adolescente vítima, ou do responsável familiar, mantendo-se o sigilo das informações e dos dados do exame clínico. O objetivo da avaliação é documentar os fatos ocorridos, obter dados e evidências que sejam adequados dos pontos de vista médico e legal, esclarecer sintomas e sinais suspeitos e ao mesmo tempo oferecer ao paciente apoio e tratamento médico e psicológico imediato com acompanhamento posterior e psicoterapias individual e/ou familiar. Não cabe ao médico clínico ou ginecologista julgar a veracidade dos fatos nem decidir ou selecionar quais dados poderão ser usados como provas ou evidências para um julgamento ou veredicto legal ou da promotoria pública. O ato médico deve ser limitado pela avaliação clínica e emocional integrada da criança ou do adolescente, para fazer o diagnóstico e para o planejamento de uma conduta terapêutica adequada.

Muitos protocolos e rotinas para avaliação e diagnóstico de abuso sexual já existem em serviços de saúde, hospitais de emergência e unidades ambulatoriais da rede. É importante preencher a ficha de notificação dos maus-tratos e/ou dos abusos, que deverá ser enviada ao Conselho Tutelar, através da direção da unidade de saúde, com cópia para a Secretaria Municipal de Saúde de sua cidade.

Descreveremos abaixo somente um resumo das principais etapas de avaliação clínica do abuso sexual de crianças e adolescentes.

1. Estabelecimento de uma relação profissional de confiança e cordialidade com o(a) paciente e com a família ou acompanhante responsável. Fazer a entrevista em separado ou em momentos diferentes, após a apresentação de cada pessoa. É importante estar em local adequado e com privacidade para a entrevista e o exame clínico. Assegurar o sigilo das informações. Ter calma e ser tolerante com reações de aversão ou medo do médico ou do exame a ser realizado e oferecer o acompanhamento de enfermeira ou auxiliar na sala, se necessário.

2. Todos os dados da entrevista e do exame deverão ser preenchidos em folha ou ficha apropriada, pois o prontuário poderá ser consultado ou servir como subsídio em caso de implicação legal. O Instituto Médico Legal, em cada estado, poderá ser acionado como referência, mas como a maioria dos casos se apresenta ao sistema de saúde, em serviços de emergência ou, a seguir, no acompanhamento ambulatorial de rotina, cabe a todo pediatra, ginecologista ou médico que atenda adolescentes estar apto a realizar essa avaliação clínica, caso necessário.

3. O tempo decorrido entre o ato de abuso e o exame clínico é da maior importância e deve ser prioritário e considerado urgente, ocorrendo no máximo 72 horas após o trauma relatado. Devido ao tempo de incubação das várias infecções e doenças sexualmente transmissíveis, nem sempre as culturas obtidas serão positivas, entretanto o tratamento deverá ser instituído, independente dos resultados laboratoriais, caso existam sintomas e sinais diagnósticos. Os testes sorológicos deverão ser repetidos seis a oito semanas após o episódio de abuso sexual, e o(a) paciente deverá ser acompanhado(a) com marcação de consulta de seguimento.

4. Descrição da aparência geral, do estado emocional e da cooperação ou não do(a) paciente deverá fazer parte da avaliação clínica. Respeitar a fragilidade emocional e as dificuldades de comunicação e verbalização do fato ocorrido. É sempre importante perguntar se o(a) paciente tomou banho ou se lavou depois do abuso e antes do exame. Solicitar permissão e autorização do(a) responsável para fotografar as lesões, caso necessário. Muitas vezes o silêncio, a vergonha, ou o medo e a multiplicidade de versões sobre o ocorrido, ou a falta de evidências de sinais clínicos, podem dificultar o diagnóstico correto, mas sempre a suspeita do abuso deve ser notificada.

5. O exame físico deverá ser feito em etapas, após a revisão dos sistemas, com observação dos sinais de violência antigos ou recentes, como cicatrizes, lacerações, contusões, equimoses e hematomas, sinais de mordidas ou garroteamento ou qualquer evidência de luta ou agressão física, ou, às vezes, corrimento vaginal ou sinais de ejaculação recente ou sangramentos.

6. Exame do corpo, incluindo mamas e áreas genital e perianal, deve ser realizado com cuidado e com a obtenção de material para culturas e comprovação laboratorial. Checar a presença de esperma com uma lâmina a fresco ou com o teste da fosfatase ácida, que é positiva até 48 horas. Obter culturas das áreas orofaríngea, uretral, vaginal, anal e retal. Obter swab para citologia e cultura de papilomavírus humano (HPV). O exame de citocolposcopia poderá ser realizado ou solicitado para comprovação legal.

7. Obter amostras de sangue para os testes sorológicos de sífilis, hepatite B, HIV e beta-HCG, de acordo com a história menstrual, e repetir os exames em seis a oito semanas.

8. Caso necessário, usar contracepção de emergência até 72 horas após o abuso, levonorgestrel 1,5mg = 1 comprimido de 12 em 12 horas por um dia, ou usar o método YUZPE (Tabela) e alertar a paciente para sintomas associados, como náuseas, vômitos ou sangramentos.




9. É importante acompanhar a paciente e suspeitar de gravidez se não ocorrer a menstruação regular. O abortamento após um caso de estupro ou abuso sexual que foi notificado é previsto em lei, devendo ser realizado até no máximo 12 semanas de gestação pela rede do Sistema Único de Saúde (SUS), se assim for o desejo da vítima; se menor de 16 anos, com autorização de seus pais.

10. O tratamento profilático do risco de DST/HIV/AIDS deve obedecer aos critérios do Ministério da Saúde para a prevenção de TrichomonasChlamydia, gonorréia, sífilis, HIV ou infecções urinárias que podem estar associadas. Ou deve-se monitorizar o(a) paciente com a realização dos testes imunológicos e de contagem das células T-CD4+ e quantificação de carga viral plasmática.

11. Alternativas terapêuticas e prescrições médicas deverão ficar sob a responsabilidade e a critério do médico que realizou o exame diagnóstico, e as doses devem ser ajustadas ao peso da criança ou do adolescente e à disponibilidade dos produtos:


  • toxóide tetânico IM e primeira dose da vacina HB para hepatite B (completar o esquema posteriormente) + imunoglobulina humana anti-hepatite B para adolescentes não-imunizados, com esquema vacinal incompleto ou caso a vacinação não seja comprovada;
  • penicilina benzatina IM, dose única, para crianças < 25kg = 600.000UI e > 25kg = 1.200.000UI;
  • ceftriaxona 125mg IM para crianças até 45kg e 250mg IM para crianças e adolescentes > 45kg;
  • doxiciclina 100mg VO, 12/12h, durante sete dias;
  • azitromicina 1g VO, dose única;
  • tianfenicol 2,5g VO, dose única;
  • metronidazol 500mg VO, 12/12h, durante sete dias;
  • secnidazol 2g VO, dose única ou, para crianças, 30mg/kg VO, dose única;
  • aciclovir 400mg VO, 8/8h, durante sete dias;
  • quimioprofilaxia anti-retroviral deverá ser iniciada no máximo em 72h quando não se conhece o estado sorológico do agressor. Dosagens atualizadas de acordo com idade e peso da criança e do adolescente podem ser obtidas no site www.aids.gov.br. Iniciar com a associação de AZT (zidovudina) + 3TC (lamivudina). Para crianças recomenda-se o uso de AZT + 3TC + NFV (nelfinavir), que já está disponível em pó para suspensão oral. Para adolescentes recomenda-se o uso de AZT + 3TC + NFV ou IDV (indinavir).


  • 12. Somente em casos necessários, de emergência psiquiátrica ou de estados depressivos pós-traumáticos, podem-se prescrever tranqüilizantes ou antidepressivos como fluoxetina ou sertralina.

    13. Acompanhamento do(a) paciente, semanal ou quinzenalmente, durante oito a 12 semanas, com sessões de psicoterapia integrada à terapia familiar, para a prevenção dos distúrbios agudos e crônicos do estresse pós-traumático, depressão ou quaisquer outras queixas corporais e emocionais. Deixar com o(a) paciente e/ou a família o telefone de contato para quaisquer intercorrências. Supervisionar o comportamento da criança e do(a) adolescente, mas sem preconceitos ou julgamentos de valor moral.

    14. Sempre oferecer ao adolescente a possibilidade de conversar sobre suas emoções em atividades de grupo ou em atividades de prevenção e educação em saúde, realizadas em escolas e comunidades. Ensinar técnicas de prevenção da violência e/ou do abuso, que podem ocorrer em qualquer local ou família, e como obter ajuda, caso necessário. Insistir sobre a necessidade de intervenções ou mesmo hospitalização em casos de crises agudas ou risco de vida.

    15. Após documentar todos os dados de diagnóstico, exames realizados, tratamento prescrito e enviar para acompanhamento clínico, psicológico, familiar e social, encaminhar para o Conselho Tutelar da área de residência do menor e preencher a ficha de Notificação de Maus-Tratos/Abusos da Secretaria Municipal de Saúde.


    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Associação Brasileira de Proteção à Infância e Adolescência. Abuso sexual, mitos e realidade. 3. ed. Petrópolis: Autores & Agentes & Associados, 2002.

    2. Brasil, Ministério da Saúde. Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes pelos profissionais de saúde. Série A, n. 167. Brasília: MS, 2002.

    3. Cardoso AC et al. Recomendações para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência física, maustratos e abuso sexual do Núcleo de Estudos da Violência contra Crianças e Adolescentes da Sociedade de Pediatria de São Paulo. Pediatria Moderna 2003;39(9):354-62.

    4. Eisenstein E, Lidchi V, coords. Abusos e proteção de crianças e adolescentes: manual de treinamento. Rio de Janeiro: CEIIAS/ISPCAN, 2003.

    5. International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect. Disponível em: http://www.ispcan.org.

    6. Neinstein LS, Warf C, Sherer S. Rape and sexual abuse. In: Neinstein LS. Adolescent health care: a practical guide. 4th ed. Philadelphia: Lippincott Wiliams & Wilkins, 2002. p.1477-510.










    1. Médica pediatra e clínica de adolescentes; professora-adjunta da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); diretora da Clínica de Adolescentes e do Centro de Estudos Integrados da Infância, Adolescência e Saúde (CEIIAS); membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), da Associação Brasileira de Adolescência (ASBRA), da Society for Adolescent Medicine (SAM), da International Association for Adolescent Health (IAAH) e da International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect (ISPCAN).
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