quinta-feira, 22 de maio de 2014

Parte IV - Bioética Clínica Volta índice

Parte IV - Bioética Clínica Volta índice   

Júlio Cézar Meirelles Gomes

Genival Veloso de França

Erro Médico

trodução

O presente capítulo tem como preocupação central estudar a natureza do erro médico, estimar seus determinantes essenciais e buscar os meios de conjurá-los, se não reduzi-los à expressão mínima. Em segundo lugar, pretende avaliar a atitude dos Conselhos comos órgãos fiscalizadores e julgadores da classe médica, no sentido de averiguar sua tolerância na fiscalização e punição do erro médico; particularmente, aferir se os Conselhos punem com rigor os desvios de conduta do médico que resultam em danos para o paciente. E em que medida isto contribui para a profilaxia do erro médico.

O último desafio enseja um natural aprofundamento das reflexões oferecidas com base em estatísticas de Conselhos de Medicina e, sobretudo, numa recente pesquisa de cunho científico sobre o perfil do médico no Brasil, a qual oferece elementos técnicos consistentes para uma avaliação rigorosa e desapaixonada do erro médico, além de estudar o próprio médico como agente exclusivo do ato médico, do seu universo de trabalho e da sua eventual propensão para erros e acertos na profissão, crime, castigo, glória e miséria.

A segunda questão, de natureza judicante/punitiva, em princípio, parece mal situada quando considera a formulação sobre o maior ou menor rigor das punições. Essa formulação oferece nuances da suspeição pela tolerância, ou seja, que os Conselhos não atuariam com rigor máximo, ungidos de um espírito repressivo marcial. Rigor no presente caso deve ser considerado como severidade máxima ou sentença desproporcional à infração (para mais, é claro). Esse tipo de indagação advém quase sempre da imprensa leiga, isto é, da mídia, e traduz uma provocação e oferece a presunção da culpa médica sem pena, pouco apenada ou não apenada.

Basta ferir um destes artigos, como se vê no gráfico abaixo, se não dois ou mais artigos combinados ou seqüenciais para alcançar o núcleo do algoritmo que configura o erro/dano. É possível, ainda, admitir a dupla ação por paralelismo ou então composição mista para o erro médico.



Definição

Erro médico é o dano provocado no paciente pela ação ou inação do médico, no exercício da profissão, e sem a intenção de cometê-lo. Há três possibilidades de suscitar o dano e alcançar o erro: imprudência, imperícia e negligência. Esta, a negligência, consiste em não fazer o que deveria ser feito; a imprudência consiste em fazer o que não deveria ser feito e a imperícia em fazer mal o que deveria ser bem feito. Isto traduzido em linguagem mais simples.

A negligência ocorre quase sempre por omissão. É dita de caráter omissivo, enquanto a imprudência e a imperícia ocorrem por comissão.

O mal provocado pelo médico no exercício da sua profissão, quando involuntário, é considerado culposo, posto não ter havido a intenção de cometê-lo. Diverso, por natureza, dos delitos praticados contra a pessoa humana, se a intenção é ferir, provocar o sofrimento com dano psicológico e/ou físico para negociar a supressão do mal pela maldade pretendida.

A Medicina presume um compromisso de meios, portanto o erro médico deve ser separado do resultado adverso quando o médico empregou todos os recursos disponíveis sem obter o sucesso pretendido ou, ainda, diferenciálo do acidente imprevisível. O que assusta no chamado erro médico é a dramática inversão de expectativa de quem vai à procura de um bem e alcança o mal. O resultado danoso por sua vez é visível, imediato na maioria dos casos, irreparável quase sempre e revestido de sofrimento singular para a natureza humana. Muitos outros erros, de outras profissões, passam despercebidos. Menos os erros dos médicos.

Erro médico _ definição e distinção

Erro médico é a conduta profissional inadequada que supõe uma inobservância técnica capaz de produzir um dano à vida ou à saúde de outrem, caracterizada por imperícia, imprudência ou negligência.

Cabe diferenciar erro médico oriundo do acidente imprevisível e do resultado incontrolável. Acidente imprevisível é o resultado lesivo, adviado de caso fortuito ou força maior, incapaz de ser previsto ou evitado, qualquer que seja o autor em idênticas circunstâncias. Por outro lado, o resultado incontrolável é aquele decorrente de situação incontornável, de curso inexorável, próprio da evolução do caso _ quando, até o momento da ocorrência, a ciência e a competência profissional não dispõem de solução.

Um pouco da história do erro médico

O Código de Hamurabi (2400 a.C.) já estabelecia que: "O médico que mata alguém livre no tratamento ou que cega um cidadão livre terá suas mãos cortadas; se morre o escravo paga seu preço, se ficar cego, a metade do preço". Entre os povos antigos há notícias de que Visigodos e Ostrogodos entregavam o médico à família do doente falecido por suposta imperícia para que o justiçassem como bem entendessem. Outros códigos antigos, como o livro dos Vedas, o Levítico, já estabeleciam penas para os médicos que não aplicassem com rigor a medicina da época. Assim, eles poderiam ter as mãos decepadas ou perder a própria vida se o paciente ficasse cego ou viesse a falecer, quando este fosse um cidadão e, se escravo fosse, indenizariam o senhor com outro servo. Entre os egípcios havia a tradição de punir o médico quando este se afastava do cumprimento das normas, e ainda que o doente se salvasse estava o médico sujeito a penas várias, inclusive a morte. Entre os gregos havia também um tratamento rigoroso do suposto erro médico. Conta-se que "a mando de Alexandre Magno foi crucificado Clauco, médico de Efésio, por haver este sucumbido em conseqüência de uma infração dietética enquanto o médico se encontrava num teatro". Em Roma, à época do Império, os médicos pagavam indenização pela morte de um escravo e com a pena capital a morte de um cidadão quando considerados culpados por imperícia (Lei Aquília). Na Idade Média, a rainha Astrogilda exigiu do rei, seu marido, que fossem com ela enterrados os dois médicos que a trataram, aos quais atribuía o insucesso no tratamento.

"Hoje pode-se descobrir os erros de ontem e amanhã obter talvez nova luz sobre aquilo que se pensa ter certeza". Este pensamento do médico judeu espanhol Maimonides reflete a preocupação em evitar o erro e aprender com sua ocorrência. Em suma, a existência de sanções inscritas nos livros sagrados ou nas constituições primitivas denota a atenção dispensada ao erro médico desde os primórdios da Medicina.

A visão da mídia

O erro médico tem sido mal focado pela mídia, que busca no rol dos eventos sociais a exceção, a ocorrência extravagante com forte fascínio e forte apelo comercial; a mídia vai em busca da versão factual da atitude humana com o duplo interesse da denúncia e da promoção de venda da notícia. Despreza em regra as causas concorrentes mais expressivas, como a má formação profissional, o ambiente adverso ao ato médico, a demanda assustadora aos órgãos de assistência médica, os baixos e tenebrosos padrões de saúde pública, etc.

Há, sim, uma atenção especial sobre o erro médico por parte das entidades fiscalizadoras e não apenas essas, como também por parte das entidades associativas responsáveis pelo aprimoramento técnico no exercício ético-profissional, bem como temos, ainda, a convicção de um percentual expressivo de punição que recai sobre o médico, maior do que em outras profissões. Punições nem sempre tornadas públicas para não infundir descrédito sobre uma profissão que fundamenta-se na estreita relação de confiança entre médico e paciente, além da discrição própria dos tribunais de discernimento médico. Vale citar Dioclécio Campos Júnior em seu livro "Crise e Hipocrisia", onde dispõe:

"Pretende-se que ao médico não assista o direito de errar porque a medicina lida diretamente com a vida. Mas, a vida não é apenas a antítese da morte. Sua plenitude depende igualmente da economia, da moradia, da alimentação, do direito, da educação, do lazer, da imprensa, da polícia, da política, do transporte, da ecologia.

Os erros cometidos pelos profissionais de qualquer uma destas áreas atentam conseqüentemente contra a vida humana. Embora sejam freqüentes e graves, não têm merecido a mesma indignação, nem o mesmo destaque que os meios de comunicação dedicam às incorreções de médicos."

E sintetiza:

"Em conclusão, o problema da sociedade brasileira não é o erro médico, mas o erro." Quanto à ação fiscalizadora e punitiva dos Conselhos de Medicina não existe rigor na acepção leiga do termo, há sim uma justiça singular, educativa, sábia, pluralista, que tem como objetivo fundamental a reabilitação do profissional e como tal não pode se restringir à simples punição.

Há quem postule na reforma da lei dos Conselhos a prerrogativa de instituir programas de treinamento para reabilitação técnica do médico, quando seu erro advém de imperícia, inabilidade ou conhecimentos insatisfatórios. A leitura obrigatória de um tratado de medicina interna educa mais o médico relapso do que três anos de castigos corporais.

Mais do que a classe médica, carece a sociedade como um todo de uma reforma ética e estrutural, profunda e vigorosa, sobre a qual deve brotar a nova medicina como flor de rara beleza, furando o asfalto, o tédio, o nojo e erguendo-se pura e radiosa, meio ciência, meio arte, mas inteira na sua vocação do bem.

Pontos fundamentais na prevenção do erro médico: um roteiro crítico para a formação e modelagem do profissional médico, conforme avaliação da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico _ CINAEM (Associação Brasileira de Educação Médica; Associação Médica Brasileira; Associação Nacional dos Médicos Residentes; Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras; Conselho Federal de Medicina; Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo; Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro; Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina; Federação Nacional dos Médicos; Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior). A CINAEM foi criada a partir de 1989 como uma resposta à crise da medicina no fim da década de 80 por iniciativa, sobretudo, do CFM e da Associação Brasileira de Ensino Médico _ ABEM.

O que se propõe:

- graduação voltada ao SUS; terminativa;

- residência / necessidades sociais;

- não ao sistema hospitalo-cêntrico;

- educação continuada;

- condições adequadas de trabalho;

- forte relação médico-paciente;

- justiça salarial;

- estabelecimentos de objetivos;

- estímulo ao vínculo único;

- código de ética nos serviços;

- saneamento ético dos congressos;

- atuação efetiva dos CRMs e do CFM;

- avaliação das escolas médicas.

O que se pretende obter:

- integração das escolas com o SUS e a comunidade;

- política educacional do país favorecendo as universidades;

- modelo pedagógico integrando os ciclos básico e profissional e apresentando currículo interdisci-plinar adequado à realidade social, orientando-se por critérios epidemiológicos;

- infra-estrutura adequada às atividades das escolas médicas, com programa de manutenção eficaz e racionalização do uso dos equipamentos;

- gestão autônoma, participativa e com perspectiva estratégica, enfatizando a avaliação contínua e global das escolas médicas;

- comunidade acadêmica motivada e participativa, atuando ativamente nos programas de formação e gestão das escolas médicas;

- tecnologias incorporadas de forma adequada;

- dotações orçamentárias suficientes;

- profissionais capacitados, contratados criteriosamente e remunerados condignamente por meio de um plano de cargos, carreiras e salários.

A razão mais essencial do erro

O médico representa o ser humano investido da prerrogativa sobre-humana de amenizar a dor, mitigar o sofrimento e adiar a morte do semelhante. Por isto, o seu erro assume proporções dramáticas, representa a negação do bem, mas nunca a intenção do mal. No entanto, a repercussão do erro sobre o paciente depende do grau de parceria estabelecido no binômio médico-paciente, no âmago dessa relação complexa e melindrosa voltada para a busca do bem. Quando há uma par ceria ativa, bilateral, marcada pelo respeito, pela afeição e pela transparência e consumada sob os auspícios da autonomia, essa relação alcança um elevado e primoroso grau de compreensão e tolerância mútuas. Não a ponto de consentir erros de parte a parte, mas de tornar as falhas compreensíveis e ensejar o exercício do perdão na parte ofendida ou pelo menos uma respeitosa tolerância. O que mais irrita o paciente e sua família é a arrogância do médico apoiada à sua concepção de excelência técnica. A arrogância, unilateral e de cima para baixo é incompatível com a boa relação médico-paciente. O âmago dessa relação depende do respeito bilateral, da atenção ao paciente como um ser humano subtraído de seu ambiente familiar e do seu convívio social de origem, refém de uma instituição não prazerosa, além da ameaça de estranhas enfermidades, dolorosas ou humilhantes.

É preciso prestar atenção ao ser humano que se esconde no estado de paciente. Para tanto, vale a pena conhecer a ilustração poética do professor de Pneumologia Gerson Pomp, hoje beletrista de elevada estirpe e refinado saber:

"EU SOU UMA PESSOA", cuja síntese é:

"Dona Enfermeira, Seu Doutor

o que me magoa,

quero confessar,

é que me tratam como caso

mas, por favor,

eu sou é uma pessoa"

Não há como afirmar que uma boa relação médico-paciente possa inibir a denúncia ou fomentar no paciente um sentimento de resignação pelo prejuízo orgânico ou funcional. Não! Mas seguramente a boa relação médico-paciente é um estímulo subjetivo para o acerto de atitudes e um espaço adequado ao entendimento das partes, sobrevindo um diálogo mais rico e proveitoso onde o médico, mais a vontade, formula perguntas acertadas e capricha no exame físico; nesse ponto sobrevêm o prazer do toque que presume amizade e não rejeição. O paciente, por sua vez, mostra-se mais relaxado, mais disposto a informar e aceitar testes diagnósticos.Uma primorosa sentença de Leterneau: "a melhor maneira de evitar ação por responsabilidade médica é estabelecer e manter uma boa relação médico-paciente."

Por fim, em nossa experiência de tantos anos em Conselhos Regional e Federal de Medicina temos visto uma significativa redução da denúncia como represália diante do erro médico e, às vezes, até mesmo a sua reversão quando as partes superam o momento agudo de insatisfação. Longe de nós admitir que uma boa relação médico-paciente possa ser usada para "abafar" o erro médico, mas com certeza os erros médicos levados ao conhecimento dos Conselhos têm sempre na sua origem uma relação médico-paciente adversa, áspera.

A questão mais crucial: como avaliar os deveres de conduta do médico?

Os deveres de conduta do médico constituem predicados essenciais na construção das virtudes inerentes à qualidade do ato médico. Se observados a contento, e mais do que isto, se estimulados e desenvolvidos, contribuem de forma primorosa para amenizar ou reduzir ao mínimo a possibilidade do erro médico. Daí porque entendemos sua inserção neste capítulo que trata do erro médico, em suas possibilidades e matizes, como fator preventivo.

Qualquer que seja a forma de avaliar a responsabilidade de um profissional em determinado ato médico, no âmbito ético ou legal, é imprescindível que se levem em conta seus deveres de conduta.

Entende-se por responsabilidade a obrigação de reparar prejuízo decorrente de uma ação onde se é culpado. E por dever de conduta, no exercício da medicina, um elenco de obrigações a que está sujeito o médico, e cujo não cumprimento pode levá-lo a sofrer as conseqüências previstas normati-vamente.

Desse modo, responsabilidade é o conhecimento do que é justo e necessário por imposição de um sistema de obrigações e deveres em virtude de dano causado a outrem.

Discute-se muito se o médico responde por erro de diagnóstico ou por erro de conduta. A maioria tem se pronunciado admitindo que o erro de diagnóstico não é culpável, desde que não tenha sido provocado por manifesta negligência; que o médico não tenha examinado seu paciente ou omitido as regras e técnicas atuais e disponíveis; que não tenha levado em conta as análises e resultados durante a emissão do diagnóstico, valendo-se do chamado "olho clínico", ou que tenha optado por uma hipótese remota ou absurda.

Mais discutida ainda é a possibilidade do médico responder por erro de prognóstico. É claro que não se pode exigir dele o conhecimento de tudo o que venha a acontecer em imponderáveis desdobramentos. O que se exige é prudência e reflexão.

Já os erros de conduta podem ocorrer _ e são os mais comuns _, mas convém que sejam analisados criterio-samente pois, nesse sentido, há discordâncias sobre a validade de cada método e conduta.

Enfim, para a caracterização da responsabilidade médica basta a voluntariedade de conduta e que ela seja contrária às regras vigentes e adotadas pela prudência e pelos cuidados habituais, que exista o nexo de causalidade e que o dano esteja bem evidente. As regras de conduta argüídas na avaliação da responsabilidade médica são relativas aos deveres de informação, de atualização, de vigilância e de abstenção de abuso.

Dever de informação

São todos os esclarecimentos na relação médico-paciente que se consideram como incondicionais e obrigatórios, tais como:

a) informação ao paciente. É fundamental que o paciente seja informado pelo médico sobre a necessidade de determinadas condutas ou intervenções e sobre os seus riscos ou conseqüências. Mesmo que o paciente seja menor de idade ou incapaz, e que seus pais ou responsáveis tenham tal conhecimento, ele tem o direito de ser informado e esclarecido, principalmente a respeito das precauções essenciais. O ato médico não implica num poder excepcional sobre a vida ou a saúde do paciente. O dever de informar é imperativo como requisito prévio para o consentimento. O consentimento pleno e a informação bem assimilada pelo paciente configuram numa parceria sólida e leal sobre o ato médico praticado.

Com o avanço cada dia mais eloqüente dos direitos humanos, o ato médico só alcança sua verdadeira dimensão e seu incontestável destino com a obtenção do consentimento do paciente ou dos seus responsáveis legais. Isso atende ao princípio da autonomia ou da liberdade, onde todo indivíduo tem por consagrado o direito de ser autor do seu próprio destino e de optar pelo rumo que quer dar a sua vida.

Se o paciente não pode falar por si ou é incapaz de entender o ato que se vai executar, estará o facultativo obrigado a obter o consentimento de seus responsáveis legais (consentimento substituto). Mesmo assim é importante saber o que é representante legal, pois nem toda espécie de parentesco qualifica um indivíduo como tal; importante saber também o que se pode e o que não se pode consentir.

Deve-se considerar, ainda, que a capacidade do indivíduo consentir não reflete as mesmas proporções entre a ética e a lei. O entendimento sob o prisma ético não tem a mesma inflexibilidade da lei, pois certas decisões, embora de indivíduos considerados civilmente incapazes, devem ser respeitadas principalmente quando se avaliam situações mais delicadas. Assim, por exemplo, os portadores de transtornos mentais, mesmo legalmente incapazes, não devem ser isentos de sua capacidade moral de decidir.

Sempre que houver mudanças significativas nos procedimentos terapêuticos deve-se obter o consentimento continuado, pois a permissão dada anteriormente tinha tempo e atos definidos (princípio da temporalidade). Admite-se, também, que em qualquer momento da relação profissional, o paciente tem o direito de não mais consentir uma certa prática ou conduta, mesmo já consentida por escrito, revogando assim a permissão outorgada (princípio da revogabilidade). O consentimento não é um ato inexorável e permanente.

b) Informações sobre as condições precárias de trabalho. Ninguém desconhece que muitos dos maus resultados na prática médica são originados pelas péssimas e precárias condições de trabalho, mesmo que se tenha avançado tanto em termos propedêuticos. Nesse cenário perverso, que pode parecer desproposital e alarmista, é fácil entender o que pode acontecer em certos locais de trabalho médico onde se multiplicam os danos e as vítimas, e onde o mais fácil é culpar os médicos.

Por tais razões, não se pode excluir dos deveres do médico o de informar as condições precárias de trabalho, registrando-as em locais próprios e até omitindo-se de exercer alguns atos eletivos da prática profissional, tendo, no entanto, o cuidado de conduzir-se com prudência nas situações de urgência e emergência.

Deve o médico manifestar-se sempre sobre as condições dos seus instrumentos de trabalho, para não ser rotulado como negligente tendo em conta a teoria subjetiva da guarda da coisa inanimada, principalmente se o dano verificou-se em decorrência da má utilização ou de conhecidos defeitos apresentados pelos equipamentos.

c) informações registradas no prontuário. Uma das primeiras fontes de consulta e informação sobre um procedimento médico contestado é o prontuário do paciente. Por isso, é muito importante que ali estejam registradas todas as informações pertinentes e oriundas da prática profissional. Infelizmente, por questão de hábito ou de alegada economia de tempo, os médicos têm se preocupado muito pouco com a documentação do paciente, com destaque para a elaboração mais cuidadosa do prontuário.

Entende-se por prontuário médico não apenas o registro da anamnese do paciente, mas todo acervo documental ordenado e conciso, referente às anotações e cuidados médicos prestados e aos documentos anexos. Consta do exame clínico do paciente, com suas fichas de ocorrências e de prescrição terapêutica, dos relatórios da enfermagem, da anestesia e da cirurgia, da ficha de registro dos resultados de exames complementares e, até mesmo, das cópias de atestados e das solicitações de práticas subsidiárias de diagnóstico.

d) informações aos outros profissionais. Em princípio, o médico não pode atuar sozinho. Muitas são as oportunidades em que a participação de outros profissionais de saúde é imprescindível. Para que essa interação transcorra de forma proveitosa para o paciente, é necessário não existir sonegação de informações consideradas pertinentes.

Essa exigência não representa apenas simples cortesia entre colegas, nem requisito de caráter burocrático. São práticas recomendadas em favor dos alienáveis interesses do paciente. Deixar de enviar informações sobre o tratamento e meios complementares de diagnóstico é uma forma de deslize grave nos deveres de conduta do médico.

O censurável, no entanto, é a omissão de informações julgadas importantes em determinado quadro clínico e cuja não revelação possa trazer irreparáveis danos ao paciente, pois o alvo de toda atenção do médico é a saúde e o bem-estar do ser humano. Muitas vezes essas informações são sonegadas por simples capricho do profissional, que não se conforma em ter seu paciente transferido para outro colega.

Outro fato, nesta mesma linha de raciocínio, é a falta de informações aos substitutos do plantão sobre pacientes internados, principalmente os mais graves, seja de forma verbal ou através do registro circunstanciado em livros de ocorrências.

Dever de atualização

O regular exercício profissional do médico não requer apenas uma habilitação legal. Implica também no aprimoramento continuado, adquirido por meio dos conhecimentos mais recentes de sua profissão, no que se refere às técnicas de exame e aos meios de tratamento, seja nas publicações especializadas, congressos, cursos de especialização ou estágios em centros hospitalares de referência. A capacidade profissional é sempre ajuizada toda vez que se discute uma responsabilidade médica.

No fundo, mesmo, o que se quer saber é se naquele discutido ato profissional pode-se admitir a imperícia, se o dano deveu-se à inobservância de normas técnicas ou despreparo profissional, em face da inadequação de conhecimentos científicos e práticos da profissão. Os erros de técnica são difíceis de ser apurados e, por isso, os magistrados devem se omitir dessa avaliação valendo-se da experiência dos peritos, pois os métodos utilizados na prática médica são discutíveis e às vezes controversos. Por sua vez, a culpa ordinária não é difícil de comprovação, como, por exemplo, a do médico que se ausenta do plantão e um paciente vem a sofrer dano pela sua omissão. A culpa profissional, esta não, traz um certo grau de dificuldade na sua apreciação, pois nem sempre há consenso na utilidade e na indicação de uma técnica ou conduta.

O que se procura em tais avaliações é saber se o facultativo portou-se com falta de conhecimento e habilidades exigidos minimamente aos que exercem a profissão. Ou seja, se ele não se credenciou para o que ordinariamente se sabe na profissão, ou se poderia ter evitado o dano caso não lhe faltasse o mínimo conhecimento para exercer suas atividades.

Dever de vigilância

O ato médico, quando avaliado na sua integridade e licitude, deve estar isento de qualquer tipo de omissão que venha a ser caracterizada como inércia, passividade ou descaso. Essa omissão tanto pode ser por abandono do paciente como por restrição do tratamento ou retardo no encaminhamento necessário.

É omisso do dever de vigilância o médico que inobserva os reclamos de cada circunstância, concorrendo para a não realização do tratamento necessário, a troca de medicamento por letra indecifrável e o esquecimento de certos objetos em cirurgias. É omisso do dever de vigilância o profissional que permanece em salas de repouso limitando-se a prescrever sem ver o paciente, medicar por telefone sem depois confirmar o diagnóstico ou deixar de solicitar os exames necessários.

A forma mais comum de negligência é a do abandono do paciente. Uma vez estabelecida a relação contratual médico-paciente, a obrigação de continuidade do tratamento é absoluta, a não ser em situações especiais como no acordo mútuo ou por motivo de força maior. O conceito de abandono deve ficar bem claro, como no caso em que o médico é certificado de que o paciente ainda necessita de assistência e, mesmo assim, deixa de atendê-lo.

Pode o médico faltar com o dever de vigilância pela omissão de outro médico? Alguém já chamou isso de negligência vicariante. Isto é, quando certas tarefas exclusivas de um profissional são repassadas a outro, e o resultado não é satisfeito. Exemplo: um médico, confiando no colega, deixa o plantão na certeza de pontualidade deste, o que não vem a se verificar. Em conseqüência, um paciente sofre danos pela ausência do profissional naquele local de trabalho. Pergunta-se: qual dos dois faltou com o dever de vigilância. O Código de Ética Médica considera que ambos são infratores. O mesmo não pode ser dito quando um médico é substituído por um colega, a seu pedido, e este age negligentemente. Seria injusto que o primeiro médico respondesse pelo descaso do outro, quando este poderia atender o paciente de maneira cuidadosa. O médico indicado para substituir um outro não pode ser considerado como preposto dele. A condição de profissional liberal habilitado legal e profissionalmente afasta a possibilidade de preposição, cabendo-lhe responder por seus próprios atos. É patente que tal substituição deva ser realizada por outro profissional que tenha a devida qualificação, baseada no "princípio da confiança", no qual alguém acredita que o outro venha atuar de forma correta, sempre que as circunstâncias o permitam. Isto também se verifica quando se analisa a responsabilidade do membro de uma equipe, desde que qualificado para exercer aquele tipo de tarefa. Não se deve responsabilizar um chefe de equipe se um dos seus membros faltou com o dever de vigilância para aquilo que é de sua competência.

Compreende-se também como falta do cumprimento do dever de vigilância a displicência que favorece resultados inidôneos de exames complementares, capazes de comprometer o diagnóstico e a terapêutica dos doentes, em laboratórios de anatomia patológica, patologia clínica, radioisótopos, citologia, imunologia, hematologia e serviços de radiodia-gnóstico. Os responsáveis pelos resultados dos exames subsidiários executados por centros complementares de diagnóstico são seus diretores, cuja presença é imperiosa na elaboração dos laudos, mesmo que tecnicamente o exame possa ser feito sob sua supervisão. O radiologista que avalia erradamente uma fratura, o patologista que se equivoca no diagnóstico de um tumor e o hematologista que troca o resultado de um exame, vindo tais atitudes causarem dano, faltaram com o dever de cuidado, dentro dos padrões exigidos na prática profissional.

Dever de abstenção de abuso

Quando da avaliação do dano produzido por um ato médico, deve ficar claro, entre outros, se o profissional agiu com a cautela devida e, portanto, descaracterizada de precipitação, inoportunismo ou insensatez. Isso porque a norma penal relativa aos atos culposos exige das pessoas o cumprimento de certas regras cuja finalidade é evitar danos aos bens jurídicos protegidos.

Exceder-se na terapêutica ou nos meios propedêuticos mais arriscados é uma forma de desvio de poder e, se o dano deveu-se a isso, não há porque negar a responsabilidade profissional. Ainda que esses meios não sejam invasivos ou de grande porte, basta ficar patente sua desnecessidade. Basta que o autor assuma o risco excessivo, ultrapasse uma conduta não permitida e que no momento da ação ele conheça, nela, um risco para o bem tutelado. Essa capacidade de previsibilidade de dano em um indivíduo de boa qualificação profissional é o que se chama de dever subjetivo de cuidado e tem um grau mais elevado de responsabilidade. No dever subjetivo de cuidado avalia-se em cada caso o que deveria ser concretamente seguido, exigindo-se do autor um mínimo de capacidade para o exercício daquele ato e a certeza de que outro profissional em seu lugar teria condição de prever o mesmo dano _ se seguiu as regras técnicas naquele procedimento, conhecidas como lex artis, ou seja, se não se desviou dos cuidados e das técnicas normalmente exigidos.

Qualquer ato profissional mais ousado ou inovador, fora do consentimento esclarecido do paciente ou de seu representante legal, tem de ser justificado e legitimado pela imperiosa necessidade de intervir. Nisso, é fundamental o respeito à vontade do paciente, consagrada pelo princípio da autonomia. Quando isso não for possível, em face do desespero da morte iminente, que se faça com sprit de finesse.

Falta com o dever de abstenção de abuso o médico que opera pelo relógio, que dispensa a devida participação do anestesista ou que delega certas práticas médicas a pessoal técnico ou a estudantes de medicina, sem sua supervisão e instrução. Nesse último caso, mesmo sendo comprovada a imprudência ou negligência deles, não se exclui a responsabilidade do médico por culpa in vigilando.

Constitui abuso ou desvio de poder o médico fazer experiências em seu paciente, sem necessidade terapêutica, pondo em risco sua vida e sua saúde. Isso não quer dizer que se excluam da necessidade do homem do futuro as vantagens do progresso da ciência e a efetiva participação do pesquisador. É preciso que ele não contribua com o ultraje à dignidade humana e entenda que a pretensão da pesquisa é avançar em favor dos interesses da sociedade. Também não se pode julgar como insensato ou intempestivo o risco assumido em favor do paciente, superior ao habitual, o qual se poderia chamar de risco permitido ou risco proveito.

Sugestões para prevenção do erro médico:

1. Trabalhar com a sociedade para que ela tome parte na luta pela melhoria das condições dos níveis de vida e de saúde;

2. Entender, o médico, que seu ato profissional é antes de tudo um ato político;

3. Lutar pela revisão das propostas do aparelho formador;

4. Melhorar a relação médico-paciente;

5. Promover a atualização e o aperfeiçoamento dos profissionais por meio do ensino médico continuado;

6. Exigir dos órgãos de fiscalização profissional um enfoque particular com relação à doutrinação e à ação pedagógica.

Conclusões

A despeito de tudo, de uma relação médico-paciente que se aproxima da tragédia e de um número assustador de demandas judiciais, os que exercem criteriosamente a medicina prefeririam estar próximos de seus assistidos por compromissos morais, gravados na consciência de cada um pelo mais tradicional de seus documentos _ O Juramento de Hipócrates. Por sua vez, a sociedade espera do profissional o respeito à dignidade humana como forma de manter uma tradição que consagrou a medicina como patrimônio da humanidade, desde os tempos imemoriais.

Com o passar dos anos, os imperativos de ordem pública foram pouco a pouco se impondo como conquista da organização social. Foi-se vendo que a simples razão de o médico ter um diploma não o exime de sua responsabilidade. Por outro lado, o fato de se considerar o médico, algumas vezes, como infrator, diante de uma ou outra conduta desabonada pela lex artis, não quer dizer que o prestígio da medicina está comprometido.

O pior de tudo é que as possibilidades de queixas, cada vez mais crescentes, começam a perturbar emocionalmente o médico, e na prática isto vai redundar no aumento do custo financeiro para o profissional e para o paciente. Além disso, também se começa a notar, entre outros fatores, a aposentadoria médica precoce, o exagero dos pedidos de exames complementares sofisticados e a recusa em procedimentos de maior risco, contribuindo, assim, para a consolidação de uma "medicina defensiva". Essa posição tímida do médico, além de constituir um fator de diminuição na assistência aos pacientes de risco, o expõe a uma série de efeitos secundários ou a um agravamento da saúde e dos níveis de vida do conjunto da sociedade. Se não houver, desde logo, um trabalho bem articulado, os médicos, num futuro não muito distante, vão trabalhar pressionados por uma mentalidade de inclinação litigiosa, voltada para a compensação, toda vez que os resultados não forem, pelo menos sob aquela ótica, absolutamente perfeitos.

Finalmente, deve-se conscientizar a sociedade mostrando que além do erro médico existem outras causas que favorecem o mau resultado, como as péssimas condições de trabalho e a penúria dos meios indispensáveis no tratamento das pessoas. Afinal de contas, muitos dos pacientes não estão morrendo nas mãos dos médicos, mas nas filas dos hospitais, a caminho dos ambulatórios, nos ambientes miseráveis onde moram e na iniqüidade da vida que levam. Desse modo, ignorando tais realidades o mais simples é sempre condenar os médicos.

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