sexta-feira, 4 de abril de 2014

Quando os Medicos erram

Quando os Medicos erram...

O numero de processos aumentou
sete vezes em apenas uma decada
Alexandre Mansur
Na sala de cirurgia, o medico Pedro Paulo Monteleone prepara-se para retirar o utero de Rosa Gonçalves Dias. as 7 horas da manha, a paciente teve o intestino lavado e os pelos pubianos raspados. A anestesia peridural, que corta qualquer sensibilidade da cinturapara baixo, faz efeito. Como Rosa tivera seus tros filhos por meio de cesariana, Monteleone abre 12 centametros de pele logo acima do p�bis, no mesmo local dos cortes anteriores, para evitar uma nova cicatriz. e trabalhoso chegar ate o utero. O medico corta uma primeira camada de gordura, abre a aponeurose, um tecido fino que envolve toda a cavidade abdominal, afasta os musculos peritoniais e alcança o intestino. A cada etapa, grampos metalicos sao colocados nas bordas das incis�es para manter os �rg�os afastados. O intestino � empurrado, com uma compressa, em dire��o ao umbigo. Em meia hora, o m�dico j� enxerga bem o �tero da paciente. A fase mais critica da cirurgia começa agora. Com todo o cuidado, Monteleone corta os ligamentos que unem as trompas ao �tero. Quando a paciente est� deitada, a bexiga fica apoiada sobre o �tero. � preciso afasta-la com uma gaze, lentamente, e ir cortando com uma pequena tesoura os peda�os de tecido que unem as finas paredes dos dois �rg�os. � como abrir um envelope, descolando as bordas, sem rasgar o papel. Monteleone sabe que qualquer corte 1 mil�metro mais profundo pode perfurar a bexiga. Foi exatamente isso que aconteceu naquela manh� de agosto de 1994. O medico Monteleone furou a bexiga de sua paciente Rosa.
Monteleone, 58 anos, obstetra e ginecologista h� 33, � formado em uma das melhores faculdades do pa�s, a Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de S�o Paulo, onde tamb�m foi professor durante tr�s d�cadas. Naquela manh�, ao perceber que tinha cortado a bexiga de Rosa, parou o que estava fazendo. Pediu fio e agulha apropriados � instrumentadora, costurou o �rg�o afetado com cinco pontos e s� depois prosseguiu na retirada do �tero. Duas horas mais tarde, quando a paciente j� estava no quarto, ainda levemente sedada, o m�dico explicou-lhe o que ocorrera durante a opera��o. Se n�o fosse pelo rompimento da bexiga, Rosa teria alta do hospital em menos de 24 horas. Em raz�o do acidente, ela ficou com uma sonda e a interna��o foi prolongada por uma semana, at� a ferida interna cicatrizar. Hoje, acad�mico renomado e profissional de sucesso, Monteleone preside o Conselho Regional de Medicina de S�o Paulo, Cremesp. Por sua mesa, na sede da entidade, passam quilos de pap�is repletos de acusa��es graves contra seus colegas de profiss�o. S�o casos de erro m�dico. Em uma d�cada, o n�mero de processos por neglig�ncia ou imper�cia encaminhados anualmente ao Conselho Federal de Medicina, CFM, a �ltima inst�ncia por onde passam processos vindos de todo o Brasil, aumentou sete vezes. Ao todo, foram 356 processos (veja gr�fico). O n�mero de condenados caiu porque o Conselho diz que n�o consegue julgar tantos casos. H� 200 na fila de espera.
"Quem diz que nunca cometeu um erro grave na carreira est� mentindo."
Pedro Paulo Monteleone,ginecologista e obstetra que furou a bexiga de uma paciente durante cirurgia
Foto: Antonio Milena 
Uma novidade � que o comportamento dos m�dicos em rela��o aos seus pr�prios erros est� mudando. At� algum tempo atr�s, com medode sofrer processos e ter a reputa��o manchada por uma acusa��o de barbeiragem, grande parte deles preferia esconder dos pacientes suas eventuais falhas. Isso s� contribu�a para complicar a quest�o. Desinformados a respeito de problemas durante a cirurgia, muitos pacientes s� descobriam que tinham sido v�timas de erro mais tarde, em raz�o de complica��es p�s-operat�rias. Os pr�prios conselhos regionais de medicina eram usados como escudo para proteger os m�dicos acusados de erro, o que freq�entemente lhes valeu a pejorativa denomina��o de "m�fia de branco". Hoje, isso ainda acontece, mas h� boas not�cias na �rea. Tome-se o caso do erro cometido por Monteleone durante a cirurgia de �tero. Depois de ouvir o relato detalhado do que tinha ocorrido, Rosa, sua paciente, nem pensou em processar o cirurgi�o. "� um al�vio saber que existem m�dicos que contam a verdade, por mais dif�cil que seja ouvi-la", diz ela. Esse tipo de relacionamento franco entre m�dico e paciente � uma grande novidade nos consult�rios e hospitais brasileiros.
Hist�rias escabrosas — Para a maioria das pessoas, erro m�dico � sin�nimo de neglig�ncia ou irresponsabilidade de maus profissionais. In�meras hist�rias escabrosas que aparecem no notici�rio contribuem para refor�ar essa vis�o (veja algumas delas nos quadros que ilustram esta reportagem). Um rec�m-nascido ficou cego porque esqueceram de colocar algod�o para proteger seus olhos na incubadeira. Uma mulher submeteu-se a uma cirurgia no abdome e, cinco anos depois, come�ou a sentir dores. Ao fazer uma radiografia, foi informada de que tinha uma pin�a cir�rgica na barriga, deixada ali pelo m�dico que a operou. Uma judoca de 14 anos foi internada para operar o menisco da perna direita. Quando acordou, descobriu que tinham mexido no menisco sadio da perna esquerda. A maioria desses casos, mais escandalosos, envolve m�dicos incompetentes e negligentes. Existe, por�m, uma verdade irrefut�vel na medicina, que torna o problema do erro mais complexo e, ao mesmo tempo, mais assustador: todos os m�dicos erram. "Quem diz que nunca cometeu um erro grave na carreira est� mentindo", afirma, sem constrangimento, o obstetra Monteleone. "Alguns erros, �s vezes graves, fazem parte do dia-a-dia da medicina", diz S�rgio Mies, professor e m�dico da Unidade de F�gado da Faculdade de Medicina da Universidade de S�o Paulo. "Mesmo os melhores m�dicos est�o sujeitos a errar."
Pelas estat�sticas, percebe-se que o grande desafio da medicina n�o � punir profissionais negligentes que cometem erros. Isso, bem ou mal, a Justi�a e os conselhos regionais j� fazem. O verdadeiro desafio � encontrar um modo de evitar que os bons m�dicos, aqueles profissionais s�rios e competentes em que os pacientes confiam cegamente, cometam falhas. Em 1991, a revista New England Journal of Medicine, uma das mais conceituadas do mundo na �rea, publicou um estudo feito nos hospitais do Estado de Nova York, nos Estados Unidos. A pesquisa, com base em an�lise de 30.000 prontu�rios, revelou que dois ter�os das complica��es que resultaram em interna��o prolongada, incapacidade ou morte foram provocados por erros m�dicos. Os americanos estimam que 120.000 pacientes morrem a cada ano em conseq��ncia de algum engano ou descuido no tratamento. Quatro entre dez m�dicos americanos j� foram acusados e processados por erros cometidos em consult�rios e hospitais. No Brasil, as associa��es de v�timas de erros m�dicos do Rio de Janeiro e de S�o Paulo t�m 3100 processos correndo na Justi�a. Os m�dicos envolvidos nesses processos t�m, em m�dia, entre dez e vinte anos de profiss�o.
Livre-arb�trio — Por que os m�dicos erram com tanta freq��ncia? Porque s�o pessoas. Errar � parte essencial da exist�ncia humana. Segundo o psic�logo ingl�s James Reason, autor do livro Erro Humano, o erro � o pre�o que os seres humanos pagam pela habilidade de pensar e agir intuitivamente. � a possibilidade de errar, ou acertar, que faz da esp�cie humana a �nica dotada de livre-arb�trio, a capacidade de escolher entre id�ias, caminhos, solu��es e alternativas diferentes. � tamb�m esse mecanismo que faz as pessoas melhorarem com o aprendizado e o ac�mulo de novas experi�ncias. Sem a perspectiva do erro, ser�amos todos exatamente iguais, homens e mulheres aborrecidamente infal�veis e previs�veis.
Existem �reas em que a tecnologia tem conseguido reduzir o erro � condi��o de uma quase improbabilidade estat�stica. Na ind�stria da avia��o, a freq��ncia de erros operacionais � hoje de apenas um a cada 100.000 v�os. Isso � poss�vel porque, na avia��o, um homem comanda uma m�quina que pode ser ajustada nos m�nimos detalhes para reagir corretamente a milhares de situa��es j� bastante estudadas. A ind�stria de eletrodom�sticos General Electric atingiu a meta de tornar os defeitos em produtos t�o raros que j� n�o podem ser estatisticamente detectados — estima-se que a propor��o seja de um erro por milh�o de acertos. Em outras atividades, em que as decis�es s�o tomadas por pessoas cujos procedimentos n�o podem ser regulados e ajustados, como os dos rob�s, a situa��o � diferente. Os engenheiros erram. Os professores erram. Os advogados erram. Os jornalistas erram — esta sua revista VEJA j� errou muitas vezes e, provavelmente, vai errar outras tantas mais. Na medicina, em que gente cuida de gente e lida com situa��es muitas vezes imprevis�veis, o erro � parte da rotina. O problema � que o m�dico lida com a vida humana. Isso torna seu erro mais dram�tico.
"O erro de avalia��o acontece. O importante � n�o abandonar o paciente."
Marcos Viannapediatra que diagnosticou otite em um caso de meningite
Fotos: Oscar Cabral 
Existe, no entanto, o profissional que erra e procede corretamente depois e o m�dico que erra e se mant�m teimosamente no erro. No primeiro caso est�o m�dicos que falham mas assumem os deslizes e os exp�em francamente aos pacientes. No segundo, os que erram por neglig�ncia ou falta de humildade para reconhecer que n�o est�o preparados para fazer determinadas cirurgias ou tratamentos. E, pior: procuram esconder os erros com atitudes desonestas em rela��o aos pacientes. A maior parte das den�ncias de erro m�dico que se avolumam nos conselhos regionais e nos tribunais de Justi�a tem uma hist�ria de mau relacionamento entre m�dico e paciente agravando a quest�o do erro. Muitos processos poderiam ser evitados com um di�logo franco e a continuidade do tratamento. Sabendo disso, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro criou, no m�s passado, uma Comiss�o de Concilia��o. Antes de dar entrada com a den�ncia, a comiss�o coloca o paciente frente a frente com o m�dico. O profissional � obrigado a explicar, em linguagem did�tica, o que houve durante determinada cirurgia ou tratamento. Nos casos mais simples, os pacientes contentam-se com um pedido formal de desculpas por parte do m�dico. Nos outros, mais complicados, � aberto um processo no CRM.
Exemplos semelhantes podem ser encontrados em outros Estados. Em Santa Catarina, o cirurgi�o Edevard de Araujo abriu um buraco maior que o esperado na bexiga de uma menina durante uma cirurgia para desobstru��o de um ureter. Dois dias depois, os pontos da bexiga estouraram e a urina passou a vazar para dentro do abdome. O outro canal do ureter que n�o tinha sido mexido tamb�m piorou. Ao contar aos pais da paciente que teria de fazer outra opera��o, dessa vez de emerg�ncia, foi bem claro: "Foi uma complica��o imprevis�vel". Os pais acreditaram e nem pensaram em process�-lo.
Outro caso exemplar de que uma conversa honesta � o melhor caminho para evitar um processo ocorreu com o pediatra carioca Marcos Vianna, da Escola Nacional de Sa�de P�blica, no Rio de Janeiro. Em 1989, Vianna atendeu uma mulher cujo filho, de 1 ano e 7 meses, tinha febre e chorava de dor no ouvido. Ao examinar o menino, o m�dico constatou que o t�mpano estava abaulado e opaco. Diagn�stico: otite. Receitou um rem�dio e mandou a crian�a para casa. O diagn�stico estava errado. Algumas horas depois, a febre piorou, o choro aumentou e a m�e, aflita, levou o filho para outro hospital, que, dessa vez, fez um exame mais detalhado. Com uma pun��o, retirou-se l�quido da medula espinhal. O diagn�stico foi meningite. As probabilidades de um paciente com meningite morrer ou ficar com seq�elas como paralisias e defici�ncias cerebrais quando n�o � medicado em 24 horas s�o enormes. Felizmente, nesse caso o menino foi socorrido a tempo e hoje leva uma vida normal. Ao saber do que tinha acontecido, o pediatra Vianna reconheceu imediatamente o erro. "O menino poderia ter morrido", afirma. Sua franqueza fez com que a fam�lia decidisse manter o menino aos seus cuidados, mesmo depois do epis�dio. "Qualquer profissional pode cometer erro de diagn�stico", diz o m�dico. "O importante � n�o abandonar o paciente."
No Brasil, o que contribui para o erro e a neglig�ncia s�o a m� forma��o dos m�dicos e as condi��es de trabalho na maioria dos hospitais. Dos 9.000 profissionais formados todo ano pelas 85 escolas de medicina do pa�s, apenas 60% conseguem vaga para fazer resid�ncia. "Mesmo quem se formou na melhor faculdade de medicina do Brasil n�o est� pronto para trabalhar sem dois anos de resid�ncia", afirma J�lio C�zar Gomes, secret�rio do CFM. "Esses 40% que chegam ao mercado de trabalho sem a forma��o completa s�o um perigo." Outro problema s�o as prec�rias instala��es dos postos de atendimento. "Em hospitais muito grandes, a situa��o for�a uma banaliza��o da morte", diz o professor S�rgio Mies. "Isso leva � neglig�ncia. � essencial que um m�dico nunca encare a morte como algo banal." Al�m das m�s condi��es de trabalho, a certeza da impunidade � outro fator que favorece os erros. Nos hospitais p�blicos, quando o m�dico erra, geralmente o processo corre contra a Uni�o, o Estado ou o munic�pio. Em rar�ssimos casos, acusa-se diretamente o profissional que cometeu a falha. Essas entidades p�blicas, e impessoais, pagam as indeniza��es, quando s�o condenadas, mas quase nunca se preocupam em punir os respons�veis pelo erro. "Ningu�m fica sabendo nem mesmo quem � o m�dico envolvido", diz Marcos Vianna. Durante os quatro anos em que ele dirigiu o Instituto Fernandes Figueira, no Rio de Janeiro, maternidade de refer�ncia nacional, o hospital pagou quatro indeniza��es por erros cometidos por m�dicos que nem trabalhavam mais l�. V�rias vezes Marcos Vianna tentou abrir sindic�ncia interna para apurar os erros, mas foi em v�o. "Convocamos comiss�es de m�dicos especialistas, mas o corporativismo correu solto", queixa-se Vianna. "Ningu�m queria ouvir falar em neglig�ncia."
O aumento do n�mero de processos contra m�dicos no Brasil deve-se a uma mudan�a de comportamento da sociedade. At� alguns anos atr�s, os m�dicos eram vistos como profissionais em quem se devia depositar uma confian�a cega, o que os tornava praticamente imunes � acusa��o de erro. Isso est� mudando, gra�as � consci�ncia dos pacientes de que eles s�o prestadores de servi�os, dos quais se devem cobrar qualidade e respeito, como em qualquer outra �rea. H� dez anos, a maior parte das den�ncias de erro partia da pr�pria classe m�dica. Hoje, 57% das queixas s�o feitas pelos pacientes e �rg�os de defesa do consumidor. Preocupados com a imagem da classe, os m�dicos, por meio dos conselhos regionais, est�o mais empenhados em punir os maus profissionais. "Precisamos aprimorar nossa credibilidade", diz Roberto D'�vila, presidente do CRM de Santa Catarina.
Licen�a cassada — No final do ano passado, um ginecologista de S�o Paulo teve sua licen�a de exerc�cio da profiss�o cassada porque rompeu o ureter e a bexiga de uma garota de 20 anos durante um aborto. No dia seguinte, com fortes dores, a paciente procurou o m�dico, mas ele se negou a atend�-la. A jovem foi parar em outro hospital e perdeu o �tero em virtude das complica��es da opera��o malfeita. O conselho regional considerou mais grave o fato de o m�dico ter negligenciado a paciente do que ter feito um procedimento ilegal (o aborto) e rompido dois �rg�os. "� um indiv�duo sem car�ter, que n�o admite que errou nem tem a sensibilidade para ver as conseq��ncias do erro", avalia Monteleone. "Esse tipo de gente n�o pode exercer a profiss�o."
Quando � julgado culpado por um CRM, um m�dico pode receber uma advert�ncia reservada, uma censura p�blica, uma suspens�o por trinta dias. Nos casos mais graves, tem o registro profissional cassado. Nos processos que chegam � Justi�a comum, as v�timas buscam indeniza��es em dinheiro e, em tese, as chances de o m�dico ser punido s�o maiores. A primeira vit�ria na Justi�a comum de uma associa��o de v�timas de erro m�dico aconteceu em 1992. "Na �poca foi um evento sem precedentes", lembra a advogada C�lia Destri, presidente da associa��o fluminense de v�timas de erro m�dico. Desde ent�o, outros 62 processos foram vencidos pelos pacientes. Em geral, as indeniza��es determinadas pela Justi�a s�o superiores a 100 sal�rios m�nimos. Os m�dicos brasileiros est�o apreensivos com a chance de ter seus procedimentos discutidos em tribunal e come�am a pensar numa "medicina defensiva". A Associa��o M�dica do Rio Grande do Sul elaborou um manual para seus s�cios se precaverem de processos por erro m�dico, com orienta��es que chocaram alguns especialistas no assunto (veja quadro). Tamb�m h� companhias de seguro oferecendo planos especiais de cobertura para os m�dicos. Uma delas, a Arias Villanueva, j� tem 400 clientes. O segurado paga 158 reais por m�s e, se for processado, tem direito a 130.000 reais para pagar indeniza��es e honor�rios do advogado.
Nos Estados Unidos, o medo de processos judiciais tornou-se uma aut�ntica paran�ia entre os m�dicos. Setenta por cento dos ginecologistas e obstetras americanos — �rea mais visada — j� foram processados pelo menos uma vez. H� casos de profissionais que foram condenados a pagar milh�es de d�lares em indeniza��es. Essa ind�stria de processos tornou-se um fil�o para as seguradoras. Todo m�dico ou hospital tem seu plano de seguro para se prevenir contra a fal�ncia no caso de ser condenado a pagar uma indeniza��o milion�ria. "L�, o medo de processos � t�o generalizado que ningu�m cria nem improvisa nada", afirma o m�dico mineiro Randas Vilela Batista, que se tornou mundialmente famoso por inventar uma cirurgia que retira um naco do m�sculo card�aco para curar determinadas doen�as. "Nos Estados Unidos, ningu�m teria coragem de fazer uma cirurgia como essa pela primeira vez", conta Randas. "O risco de sofrer um processo, caso algo sa�sse errado, seria grande demais."
Apesar da paran�ia, os Estados Unidos conseguiram reduzir a incid�ncia de erros em determinadas �reas da medicina, como a anestesia. Esse � um caso espetacular de sucesso. No in�cio da d�cada de 80, uma a cada 10000 anestesias feitas nos hospitais americanos tinha algum problema que resultava em morte. O presidente da Sociedade Americana de Anestesiologistas, Ellison Pierce, decidiu lan�ar uma cruzada para reduzir as chances de erro. Pierce usou um trabalho realizado dez anos antes pelo engenheiro Jeffrey Cooper, contratado pelo Hospital Geral de Massachusetts para estudar as causas dos problemas durante a anestesia. Cooper analisou 359 casos de erros, que inclu�am pouco treinamento dos profissionais, defici�ncia dos equipamentos, m� comunica��o entre os membros da equipe cir�rgica, cansa�o e desaten��o. As altera��es determinadas por Pierce foram, em geral, f�ceis de executar. Reduziram-se as horas de trabalho, os mostradores dos equipamentos foram padronizados, sistemas de alarme passaram a ser acionados automaticamente em situa��es de risco, trancas de seguran�a para evitar excesso de g�s anest�sico foram instaladas. Uma d�cada depois, o �ndice de mortalidade caiu para uma em mais de 200000 opera��es, redu��o de 95%.
Com os resultados obtidos na anestesiologia, fica claro que, apesar das limita��es impostas pela condi��o humana, a medicina ainda pode melhorar muito no combate a seus erros. A busca da perfei��o, ainda que inating�vel, � a �nica sa�da compat�vel com a �tica m�dica nesses casos. Colocar a culpa nas p�ssimas condi��es do sistema de sa�de brasileiro, na forma��o deficiente dos profissionais, no excesso de horas trabalhadas, no baixo sal�rio ou na falta de equipamento adequado � fugir da ess�ncia do problema. Em alguns hospitais universit�rios e poucas cl�nicas particulares, acontecem reuni�es semanais em que m�dicos, enfermeiras, residentes, psic�logos, fisioterapeutas, todos os envolvidos em cada departamento, discutem os casos complicados. Na unidade de f�gado do Hospital das Cl�nicas de S�o Paulo, as reuni�es t�m o nome de "complica��es e �bitos". "Discutimos abertamente tudo o que acontece, principalmente os erros. O objetivo � aprender com o insucesso e tentar evitar a repeti��o", explica o m�dico e professor S�rgio Mies. Discuss�es dessa natureza s�o a melhor not�cia que se poderia dar aos pacientes. "N�o � razo�vel exigir que a medicina atinja a perfei��o", afirma o m�dico americano Atul Gawande, autor de um artigo sobre erro m�dico publicado no m�s passado pela revista The New Yorker. "O que � razo�vel � pedir que a medicina nunca deixe de busc�-la."

Faltou um exame

Foto: Moreira Mariz
Durante uma consulta pr�-natal, o m�dico Marco T�lio Vaintraub, de Belo Horizonte, perguntou � professora de educa��o f�sica Soraia Magalh�es qual era seu tipo de sangue. Ela respondeu Rh positivo. O m�dico n�o se preocupou em checar a informa��o mediante um exame de laborat�rio. O resultado foi desastroso. Quando Henrique nasceu, na Maternidade Otaviano Neves, apresentou sinais de eritroblastose fetal, uma doen�a que acomete rec�m-nascidos cujos pais t�m incompatibilidade sangu�nea. Soraia tinha Rh negativo, mas a equipe da maternidade levou dois dias para identificar o problema e tomar a atitude indicada: substituir todo o sangue do garoto. Era tarde. A doen�a j� tinha provocado uma les�o no c�rebro. Hoje, com 2 anos e meio, Henrique n�o fala nem anda e tem o desenvolvimento retardado. O obstetra e a maternidade respondem a processos na Justi�a. "Foram dois erros grosseiros seguidos", acusa a m�e do garoto. Vaintraub se defende dizendo que a culpa pela informa��o errada sobre o tipo sangu�neo foi de Soraia. "N�o cabia a mim duvidar dela", diz o m�dico. O hospital afirma que n�o tomou as provid�ncias a tempo porque trabalhava com uma informa��o errada.

Morte na cirurgia

Foto: Liane Neves
Adelaide Perazzollo Balestreri, de 72 anos, internou-se no Instituto de Cardiologia de Porto Alegre, em setembro do ano passado, para fazer uma opera��o de ponte de safena com o cardiologista Jo�o Ricardo Sant'Anna. Quatro horas depois de iniciada a cirurgia, a fam�lia foi avisada de que tudo correra bem. Algumas horas mais tarde, o m�dico disse aos parentes que Adelaide apresentava uma queimadura nas costas. S� no dia seguinte se descobriu que o caso era muito mais grave que a vers�o inicial: a paciente tinha queimaduras de terceiro grau nas costas e n�degas e corria risco de vida. "Ela estava em carne viva, inchada, parecia um monstro", lembra Miriam Manfredini (na foto com o retrato da av�). V�rias cirurgias de enxerto de pele foram feitas, mas Adelaide n�o resistiu e morreu. Na necropsia, tamb�m foi constatada fratura de duas costelas. O cardiologista afirma que as queimaduras devem ter sido provocadas por um defeito no colch�o t�rmico da sala de cirurgia. "Minha opera��o foi bem feita, mas houve algum problema com os equipamentos", alega. O caso est� na Justi�a.

"Uma fatalidade"

A servente escolar Lucia Silva de Carvalho levou seu filho �nico, Bruno, de 9 anos, ao Hospital da Piedade, no Rio de Janeiro, para extrair o ap�ndice no dia 29 de setembro de 1993. Por problemas na anestesia, Bruno teve uma parada respirat�ria. O c�rebro ficou sem oxig�nio e o menino entrou em coma. Saiu da mesa de cirurgia direto para a UTI. Um dos m�dicos chamou Lucia em um canto e disse: "Houve uma fatalidade. Ele parou". Durante v�rios dias, a m�e tentou descobrir o que tinha acontecido, mas os m�dicos e enfermeiros desconversavam. Tr�s meses mais tarde, Bruno teve alta. Desde ent�o, vive em estado quase vegetativo aos cuidados da m�e: n�o mexe bra�os e pernas, n�o fala, n�o reage a nada. Para cuidar dele, Lucia parou de trabalhar. Um ano depois, entrou com um processo contra a Uni�o, dona do hospital, alegando erro do anestesista. Ganhou em primeira inst�ncia e recebe dois sal�rios m�nimos como "tutela antecipada", uma indeniza��o provis�ria at� a defini��o do caso.

"Foi um horror"

Para eliminar um v�rus, a t�cnica em agropecu�ria Elizabete Maria Barbosa submeteu-se a uma cauteriza��o no �tero. Foram quatro sess�es de tratamento nas quais a ginecologista Thereza Chrystina Elias Cardoso, do Recife, errou na quantidade de �cido aplicado, provocando dores e queimaduras vis�veis na coxa e na virilha. "Ardia, queimava. Foi um horror", conta Elizabete. Os ferimentos causaram estreitamento e colagem do canal vaginal. As tentativas da m�dica para corrigir o problema foram ainda mais desastrosas. Primeiro procurou abrir a vagina da paciente com as m�os. N�o deu certo e ela optou por uma cirurgia, na qual o bisturi el�trico provocou novas queimaduras, de terceiro grau, em Elizabete. Ao receber alta, a t�cnica foi informada de que nunca mais teria atividade sexual. Acionada pelo Minist�rio P�blico, a ginecologista foi condenada a ficar sem trabalhar quatro anos e meio. Recorreu e hoje � m�dica num hospital e no posto da prefeitura de Olinda.

Pin�a na barriga

Em 1992, a aposentada carioca Isa�ra Maria Gon�alves submeteu-se a uma opera��o para retirada de um tumor no �tero. Na apar�ncia, a cirurgia, realizada no Hospital Salgado Filho, da rede municipal, foi um sucesso. Isa�ra teve alta no dia seguinte e passou a viver normalmente. At� que, no Natal de 1997, come�ou a sentir uma dor forte e persistente na barriga. A urina estava escura. "Achei que tivesse comido alguma coisa estragada", lembra. Com essa suspeita, no dia 8 de janeiro do ano passado ela foi novamente levada pela fam�lia ao Hospital Salgado Filho. Uma radiografia (foto) revelou uma informa��o espantosa: dentro de seu abdome havia uma pin�a cir�rgica de 15 cent�metros. O instrumento tinha sido esquecido pela equipe que fez a opera��o, em 1992. Isa�ra foi transferida imediatamente para o centro cir�rgico e operada. "O mais inacredit�vel � que, durante cinco anos, eu n�o senti nada", diz. A fam�lia de Isa�ra est� movendo uma a��o indenizat�ria contra o munic�pio do Rio de Janeiro por neglig�ncia m�dica.

Um guia para esconder o erro

Associa��o M�dica do Rio Grande do Sul publicou um manual para orientar seus filiados sobre como se prevenir de processos por erro m�dico. Assinado pelo advogado Marco Antonio Bandeira e pelo m�dico e advogado Luiz Augusto Pereira, o guia deixa claro seu objetivo j� na apresenta��o: "Neutralizar fatores externos agressivos e preconceituosos em rela��o a nossa atividade, como associa��es de v�timas de 'erro m�dico', autoridades oportunistas, imprensa sensacionalista". A pedido de VEJA, o professor de �tica m�dica Marco Segre, da Universidade de S�o Paulo, e o advogado paulista Jos� Rubem Macedo Soares leram o manual. "O texto instiga a sonega��o fiscal, faz apologia do crime, incita a pr�tica de supress�o de documentos, aconselha fraude processual e fere o c�digo de �tica dos advogados", afirma Soares. "Do ponto de vista da �tica m�dica, � uma aberra��o", resume Segre.
Confira alguns itens do manual:
 "Quando for decidido pelo m�dico que deve prestar depoimento perante a autoridade policial ou a promotoria, deve faz�-lo usando a linguagem mais t�cnica e herm�tica poss�vel, recusando explica��es em termos leigos ou coloquiais. Para dificultar a den�ncia."
 "� princ�pio de boa cautela consultar um advogado para ser orientado sobre a forma legal de retirar o patrim�nio de nome pr�prio, para evitar o risco de perd�-lo para o paciente demandante."
 "O m�dico faz hoje parte de uma classe desprotegida. Sem poder pol�tico nem uni�o profissional, est� acuado por pacientes gananciosos."
 "As prec�rias condi��es e a falta de equipamentos imp�em ao m�dico decis�es que a ele n�o cabe tomar. Tipo quem vai viver, quem vai morrer, na insufici�ncia do n�mero necess�rio de respiradores artificiais. Nesses casos, deve ser observada a rigorosa ordem cronol�gica de chegada dos pacientes ao local do atendimento. N�o importa quem tem maiores chances de sobreviver."
 "Evitar pacientes que recusam determinadas terapias por raz�es �ticas ou religiosas."
 "Evitar plant�es de atendimento p�blico."
 "O Conselho Federal de Medicina afirma que o prontu�rio m�dico pertence ao paciente. Est� equivocado. O paciente tem direito a um relat�rio m�dico, elaborado a partir do prontu�rio."
Com reportagem de Dina Duarte, do Recife, Jos� Edward,
de Belo Horizonte, e Cristine Prestes, de Porto Alegre


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