sábado, 17 de junho de 2017

Vítimas esquecidas dos erros médicos




Margarida Leal: "Não come, não fala, não anda. Eu sou os braços, as pernas e a língua da Inês"
Gonçalo Rosa da Silva

A VISÃO fez o retrato dos erros médicos. Aumentam as denúncias mas tardam as respostas. As histórias de quem luta contra a injustiça nos hospitais. E o que fazer para se queixar



odíamos começar esta reportagem a contar como é ser mãe de uma criança deficiente em Portugal, com um apoio do Estado que não chega a 150 euros, quando só a cadeira de rodas adaptada custa 20 mil. Ou como o esqueleto sem vontade de Inês se desmorona se a mãe não tiver forças para aqueles vinte quilos de existência, com um cérebro competente a comandar um corpo incapaz de obedecer. Seria mais do que justificado.
Mas este trabalho é sobre o antes. 
Sobre aquilo que chega a causar mais dor do que a doença – o erro. Sobre o que podia ter sido diferente (11% dos internamentos resultam em complicações evitáveis) ou desculpado (se alguém o admitisse). O que podia até ser compensado (caso médicos e juízes vissem o mesmo que as vítimas – e o sistema jurídico estivesse desenhado para proteger os mais fracos).
Em Portugal, queixar-se implica enfrentar médicos que se recusam a admitir o erro; administrações hospitalares que não deixam os clínicos admiti-lo, mesmo que quisessem; leis diferentes para quem é atendido no sistema privado ou no Serviço Nacional de Saúde (SNS); uma Medicina Legal a analisar agora processos apresentados há dois anos; uma Ordem dos Médicos a admitir que se atrasa ao ponto de deixar prescrever processos disciplinares.
Esta é a história de um sistema ineficiente. Não exatamente porque erra – ato que sempre irá com a condição humana –,
mas porque esconde, desculpabiliza e pouco ou nada faz para evitar voltar a cair.
Graça Domingues: "A maminha foi-se. Estou cheia de cicatrizes. Como se tivesse remendos. Umas calças rotas. Acontecem estas coisas porque ninguém se queixa"

Graça Domingues: "A maminha foi-se. Estou cheia de cicatrizes. Como se tivesse remendos. Umas calças rotas. Acontecem estas coisas porque ninguém se queixa"
Gobnçalo Rosa da Silva

SAÚDE E JUSTIÇA: DUPLA AGONIA

O avô sustenta-lhe a cabeça, a avó desprende as fitas da cadeira que evitam 
a queda de um corpo comprido para os 9 anos de vida, a mãe pega-lhe ao colo. 
O esforço ímpio de três adultos para uma criança não rouba os sorrisos a nenhum dos membros da família.
Mas quando Margarida Leal, 39 anos, recorda o dia do parto, no Hospital Garcia de Orta, em Almada, depois de uma gravidez sem problemas, as expressões mudam: “Às oito da noite tive uma contração que não parava. Dores horríveis. Pedi ajuda. Mas o parto só aconteceu mais de duas horas depois.” E esse tempo, lê-se no relatório do Instituto de Medicina Legal, devia ter sido encurtado: “A partir das 20.16 horas há uma mudança do padrão cardiotocográfico fetal (CTG), tornando-se, no mínimo, num padrão suspeito. Assim, dado que se tratava de uma grávida com 
41 semanas de gestação (…), deveria ter sido, de imediato, efetuada a rutura artificial das membranas corioamnióticas, visando observar as características macroscópicas do líquido amniótico.”
A conclusão não foi suficiente para condenar o médico do Garcia de Orta que assistiu Margarida. Contactado pela 
VISÃO, o hospital nega as acusações: “Não houve qualquer atraso na realização da cesariana, pelo contrário foi a mesma antecipada.” Mais, recusa qualquer causalidade entre a deficiência de Inês e o parto: 
“As lesões cerebrais irreversíveis não foram consequência do parto, mas do período certamente longo mas impossível de determinar clinicamente, de aspiração de mecónio pelo feto e consequente dificuldade ou privação respiratória.”
Argumentos que levariam ao arquivamento da queixa. Mas Margarida continua convicta de que tudo deveria ter sido diferente. A Inês “começou pelo fim”, resume, “nasceu morta”. Só aos seis meses é admitido o diagnóstico de paralisia cerebral. “Fizeram-nos imensos exames para tentarem provar que havia doenças congénitas, mas não encontraram nada. O hospital quis ocultar para não assumir culpas. 
É quase infantil esta reação: esconder, fazer de conta que nada aconteceu...”
Margarida nunca se conformou. Gastou mais de mil euros em advogados e custas judiciais, mas o máximo que conseguiu foi um “apaziguador tom crítico do juiz em relação à atuação do obstetra”.
Apesar da revolta desta mãe, seria difícil (e raro) outro desfecho num caso nos serviços estatais, julgados pelas leis da Administração Pública. “Entra-se num processo kafkiano de desfecho incerto. A divisão entre ocorrências no público e no privado causa injustiças. No público prescreve em 3 anos e no privado em 20. É um inferno para médicos e doentes”, disse à VISÃO André Dias Pereira, diretor do Centro de Direito Biomédico.
Para o jurista de Coimbra, só haverá justiça quando se fizerem mudanças profundas no sistema de direito em saúde. “Muitos países perceberam que era preciso legislação própria. Já é assim com os acidentes de viação e de trabalho, com a maior parte dos casos a ser tratado sem recurso a tribunal. Importa olhar para isto como se fez nos acidentes de viação. Até porque, anualmente, morre mais gente nos hospitais por erros evitáveis do que nas estradas.” Inspirando-se no exemplo de outros países, Dias Pereira pede mudança: “Queremos pôr um 
movimento em marcha para fazer como em França e na Bélgica, onde em seis meses se consegue dizer se houve nexo de causalidade.”
Os próprios advogados de algumas instituições do SNS admitem, em off, que deveria ser diferente. Num hospital público, onde as queixas duplicaram, até há seguro de responsabilidade civil, obrigatório desde 2014, para responder aos casos de erro. Mas, reconhece uma jurista, ninguém gosta de o usar. “Parece que estamos a defender as seguradoras. A postura não devia ser de fuga por parte dos hospitais. É tudo tão difícil para os doentes que só se queixa quem tem dinheiro para advogados.”
Depois dos hospitais, que continuam a dificultar o acesso a documentos e informação, muitas vezes ilegalmente, as vítimas e as famílias encontram no Instituto de Medicina Legal (IML) novo obstáculo. “Estivemos mais de dois anos à espera da perícia. O processo ficou muito tempo parado por isso, apesar da insistência do tribunal, que chegou a enviar sete ofícios relativos à perícia médico-legal”, recorda Elsa Sequeira Santos, advogada no caso da morte da mulher de Rui Cardoso Martins, que muitos esperam vir a fazer jurisprudência (ver no final desta página).
Tudo se conjuga para uma longa agonia judicial, a somar à médica. No instituto admite-se que só agora estão a analisar-se casos entrados em 2014, mantendo-se atrasos como os sentidos por aquela advogada. “Não estamos em dia como gostaríamos. Para as vítimas pode ser um amargo de boca, mas não podemos fazer de outra maneira. O conselho diretivo, com 
21 membros de várias instituições e pontos do País, só consegue reunir sete vezes por ano.” Um conselho tão alargado, reconhece o presidente Francisco Brízida, “enriquece o debate, mas prejudica os prazos”.
Luís Leitão: "Tudo se construiu e tudo se perdeu. Quero perceber o que aconteceu. Dar uma explicação aos meus filhos. Pedi o relatório ao hospital e não me deram nada. É vergonhoso. Magoa."

Luís Leitão: "Tudo se construiu e tudo se perdeu. Quero perceber o que aconteceu. Dar uma explicação aos meus filhos. Pedi o relatório ao hospital e não me deram nada. É vergonhoso. Magoa."
Gonçalo Rosa da Silva

‘A MAMÃ VAI MORRER?’

Nem um cartão de condolências. Luís Leitão, 43 anos, bancário, resume assim a dor (dispensável) que teve de acamar ao luto da mulher, Cristina, internada no Hospital CUF Descobertas para uma cirurgia prometida como “corta, cola e une” e terminada em morte por septicemia. Aos 43, deixando dois filhos órfãos de mãe.
É verdade que Cristina tinha um tumor no intestino, mas tinha sido classificado de baixo risco. “Nem seria preciso químio.” Segundo Luís, o médico que operou a 
mulher “trabalhava em mais três instituições e só pôde fazer a cirurgia à noite.”
Um pormenor que o viúvo acredita ter contribuído para a morte da mulher. E que, embora na mira da Ordem dos Médicos, continua por resolver. “No privado não há controlo nenhum”, admite o bastonário, José Manuel Silva. “Sabemos que o trabalho contínuo aumenta o erro e estamos preocupados com o número de horas seguidas a trabalhar. Já elaborámos um regulamento para que os internos estejam proibidos de fazer turnos de 24 horas e vamos propor que a Ordem dos Médicos possa fazer auditorias nos setores privado e social”, revelou.
“Papá, a mamã vai morrer?”, quis saber o filho de 8 anos, à entrada do elevador. “Não!” As certezas de então são agora lágrimas de pai, revoltado. Quatro dias depois da operação, o médico entra pelo quarto adentro, “nem repara que estavam lá os miúdos... pela primeira e última vez.” Vai direito à cama e dispara: “Tenho más notícias. Fiz as coisas bem, mas temos de operar outra vez.” Cristina ainda arranja forças para sugerir que as crianças fiquem com a avó para o marido voltar ao hospital. Depois, o último beijo. “Não sabia que era o último...”
Já não voltaria a ver a mulher consciente. “Tudo se construiu e tudo se perdeu.” Passado um ano, Luís continua de luto. Pela perda. Mas, mais ainda, pela sucessão de erros que atribui ao hospital do grupo Mello. “Quero perceber o que aconteceu. Já pedi várias vezes o relatório de gastro e não me deram nada. Este comportamento é vergonhoso. Magoa.”
Perante o nada do lado da instituição, Luís Leitão decidiu avançar com uma ação cível por danos “baseados na negligência do médico”. À VISÃO, a CUF disse “lamentar a perda da família”, garantindo que os procedimentos clínicos realizados foram “adequados” e que “toda a informação solicitada foi disponibilizada”. Por estar a decorrer um processo judicial, o grupo Mello nada mais quis acrescentar.
Cristina Sadio: "Como me tinha queixado, disseram que havia um conflito médico-doente e o meu pai ficou sem consulta"

Cristina Sadio: "Como me tinha queixado, disseram que havia um conflito médico-doente e o meu pai ficou sem consulta"
Gonçalo Rosa da Silva

ERRO: TERCEIRA CAUSA DE MORTE

Apesar de todos os entraves à descoberta de uma verdade vital para doentes e família – a neurologia explica já que se ultrapassa mais facilmente um trauma quando se tem elementos sobre o que se passou –, o número de participações tem vindo a aumentar. Só no departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, as queixas duplicaram entre 2010 e 2015, de 31 para 65 pedidos de inquérito. Já na Ordem dos Médicos, entre arquivamentos e condenações, foram tomadas mais de quatro mil decisões disciplinares em cinco anos.
A experiência de mais de uma década em perícia médica no Tribunal de Sintra levou João Meira e Cruz, 66 anos, cirurgião reformado do serviço público a fundar com o filho, Pedro, uma empresa que pudesse ajudar famílias e advogados a traduzirem o que lhes aconteceu antes de avançarem para processos judiciais. Na Best Medical Opinion, os pedidos relacionados com eventos clínicos cresceram 70% entre 2014 e 2015, num total de 180 analisados. “Os hospitais têm dificuldade e aversão em dar informação. Tenho um processo com 800 páginas que nem sequer estão numeradas. Se não é de propósito, parece. Enquanto estive no Tribunal de Sintra, senti muita dificuldade em obter informação médica qualificada. A maior parte dos boletins de internamento tinha uma única palavra: politraumatizado.”
Crítico da expressão “erro médico”, que substituiria por “erro em saúde”, o cirurgião lembra que “a Medicina é hoje um ato coletivo, mesmo se exercido individualmente”. Mas, acrescenta: “Existimos para defender a honestidade dos factos, não os médicos.” Confrontado com processos em que “a informação vem rasurada”, Meira e Cruz acredita que “muitos dos conflitos resultam de falta de humildade das estruturas de saúde”.
Um problema que José Fragata, diretor do serviço de Cirurgia Cardiotorácica no Hospital Santa Marta, em Lisboa, faz questão de combater. Em 40 anos de serviço e 10 mil doentes seguidos, não hesita em admitir que já cometeu erros. Mas, quando se dão, “explico o que aconteceu e peço desculpa”.
É, por isso, claro para José Fragata que a informação, além de ser “uma obrigação ética do médico, satisfaz o direito de autonomia do doente”. Até porque, “numa marquesa, cobertos de betadine, somos os seres mais frágeis do universo”.
Com esta consciência, publicou, em 2004, o livro O Erro em Medicina (Almedina), com dados sobre o que os médicos faziam mal. “Iam-me cortando a cabeça”, admite. Hoje é convidado para conferências e tornou-se referência no tema do erro, que separa entre honesto e negligente.
Para ilustrar a diferença, José Fragata mostra as grelhas onde se prevê, para cada doente entrado, a probabilidade de sofrer uma queda. Uma informação que obriga a adaptar as medidas de segurança a cada caso – e reduzir o erro. Não apenas porque se quer, mas porque se pode. “Em 300 internamentos, poderá morrer uma pessoa por acidente. Mas na aviação só morre uma em cada 10 milhões de voos. Na saúde, em cem internamentos, onze resultam em complicações evitáveis”, resume o cirurgião, perito em transplantes pediátricos.
Nos EUA, já se somam em mais de 
250 mil as vítimas de erro médico por ano. O estudo da universidade de Medicina Johns Hopkins posiciona o problema como terceira causa de morte no país, logo depois do cancro e das doenças cardiovasculares. Números como este provam que o combate ao erro podia salvar muitas vidas.
Mas Portugal está ainda longe dessa batalha. Como comprovou Cristina Sadio, rodeada de cartas registadas e cópias de relatórios, que espalha no sofá da sala. 
Algumas entidades nem responderam, outras resumem o sofrimento da família a um seco “arquivamento”. “Porque saem os médicos sempre ilesos?”, questiona.
Depois de uma hemorragia pulmonar no final de 2015, o pai, Joaquim Sadio, de 68 anos, procurou ajuda no Hospital Fernando da Fonseca, na Amadora. A tomar anticoagulantes devido a problemas cardíacos, terá sido decidido pará-los no seguimento da hemorragia. Duas semanas depois da interrupção dos anticoagulantes que tomara durante 15 anos, Joaquim Sadio teve um Acidente Vascular Cerebral (AVC).
Ao verem um pai que ia buscar os netos à escola e ainda fazia projetos de montagem de piscinas, condenado a bengala e limitações na fala, as três filhas não se conformaram. Conselho de Administração do hospital, Ordem dos Médicos, Procuradoria-Geral da República, Entidade Reguladora da Saúde, Inspeção-Geral das Atividade em Saúde – todos ficaram a saber o que Cristina lia nos factos: “Podia ter-se evitado o AVC se a consulta fosse no dia previsto, uma semana depois da hemorragia, em dezembro. Mas só em janeiro é que o viram e passaram outros anticoagulantes.” Mais do que o erro, é a reação do médico que revolta Cristina Sadio. Quando, em abril deste ano, regressa com o pai ao hospital, é-lhe recusado o atendimento. “Como me tinha queixado disseram que havia um conflito médico-doente e o meu pai ficou sem consulta”, conta Cristina, sem esconder a indignação. “Tenho uma revolta tão grande dentro de mim. Não é por errarem, é por desligarem dos doentes.”
Contactado pela VISÃO, o Hospital Amadora-Sintra nega qualquer falha. “Registamos, de facto, uma queixa do doente por, alegadamente, a broncoscopia aqui efetuada não ter sido conclusiva quanto ao diagnóstico. Perante essa queixa, o diretor de serviço de Pneumologia reencaminhou o doente para outro médico. Marcada a consulta para assistência ao senhor Fernando Sadio, ele faltou à consulta.”
Embora raramente valorizado por médicos ou advogados, um simples pedido de desculpas pouparia ainda mais sofrimento. “Não reconhecer o erro faz com que o impacto psicológico seja pior. É importante que as pessoas saibam que o dano psicológico também é medível e indemnizável”, alerta o psicólogo forense Mauro Paulino.

ASSOCIAÇÃO PELAS VÍTIMAS

Graça Domingues sabe que o tempo da queixa judicial não é o dela. Sabe que suportar a notícia de um cancro da mama a impor mastectomia (extração total) implica soma de forças no preciso tempo em que elas mais pendem para a subtração. Sabe igualmente que ter uma mama reconstruída e vê-la – literalmente – esvair-se quando um dia se dobrou para apertar os sapatos, é razão mais do que sobrante para chorar. Fugir de espelhos. Ficar saudosa de uma simples blusa.
Sabendo tudo isto, Graça não se perdoa por não ter feito queixa do médico nem do hospital. Sobretudo depois de, um dia por acaso, ouvir numa conferência sobre cancro da mama, que “não, não me podiam ter posto uma prótese porque tinha feito radioterapia, a pele estava toda queimada e faltava elasticidade”.
Mesmo aos tropeções, a vida continuou. Graça, 58 anos, criou um negócio de takeaway com o marido, não quer dizer onde foi operada, mas quer servir de exemplo. Nem que seja para mais ninguém fazer como ela. “Sinto revolta, desgosto, tristeza. Falo abertamente do cancro, mas a parte da prótese é uma revolta completa. O que me aconteceu foi erro médico. A maminha foi-se. Estou cheia de cicatrizes. Como se tivesse remendos. Umas calças rotas. Acontecem estas coisas porque ninguém se queixa e eu sou outra burra que não se queixou”, recrimina-se. Para logo acrescentar: “A força não chega para tudo.”
Pois não. Por isso, a maior parte dos países (Espanha há mais de 20 anos) tem associações de apoio a doentes que se julgam vítimas de erro médico. A partir desta semana, com o lançamento da Negli.Med (www.neglimed.pt), também os portugueses podem sentir-se menos sozinhos. 
“Perante o problema, o que fazer? O objetivo da associação é dar apoio a vítimas de negligência médica porque há falta de aconselhamento. Teremos aconselhamento de advogado, psicólogo e médico legista”, explicou à VISÃO, a presidente, Elisabete Carvalho, 58 anos, psicóloga.
Quando, há 6 anos, ia morrendo com uma septicemia, depois de uma cirurgia, Elisabete enfrentou barreiras médicas e jurídicas. “Se existisse uma associação, talvez não tivesse sofrido tanto. Há medo de represálias. É difícil ir para tribunal, pelo desgaste emocional e porque fica caro.” Embora se tenha inspirado no seu caso para criar a associação, Elisabete faz questão de salientar: “Não estamos contra os médicos. Queremos colaborar com eles para que haja cada vez menos casos.”
O prognóstico não é dos melhores. Mas há esperança. Um grupo de juristas quer avançar com um manifesto e “copiar” o sistema francês, que dá resposta às queixas em seis meses. E, este ano, a Ordem porá em prática os novos estatutos que aumentam para 15, em vez dos atuais cinco, os clínicos encarregues de analisar queixas disciplinares só na zona sul do País.
Assim como Elisabete nega tratar-se de uma associação contra médicos, também o bastonário garante estar satisfeito. “Pode ser um bom interlocutor com a Ordem. Portugal crucifica o erro e é preciso assumi-lo para melhorar. O número de queixas tem aumentado. Vamos ser mais eficientes na resposta”, assegura José Manuel Silva, que, com isso, espera que deixe de haver “processos a prescrever por não se cumprirem os prazos”.
Tudo boas ideias. Que vêm tarde demais para evitar a viuvez de Luís, a mutilação de Graça, o AVC do pai de Cristina ou a deficiência de Inês. Mas talvez ainda a tempo de os fazer acreditar que nem todo o sofrimento foi em vão.

Casos exemplares

Em Portugal, ainda é raro um queixoso de negligência ou erro médico sentir que se fez justiça. Mas nos últimos anos houve alguns exemplos que marcaram pela diferença. Um deles foi o caso dos cegos do Hospital de Santa Maria e o outro foi o processo do escritor Rui Cardoso Martins.

CEGOS DE SANTA MARIA

Uma troca de fármacos levou seis doentes à cegueira em 2009. Numa postura invulgar, ou mesmo inédita, nas instituições de saúde portuguesas, o hospital assumiu o erro e resolveu a questão por via negocial em vez de obrigar os queixosos a fazerem a via sacra que normalmente se impõe. Um dos homens que ficou cego de ambos os olhos recebeu uma indemnização nunca antes paga por um hospital público: 246 mil euros. Os outros cinco foram também indemnizados, embora por valores menores. O tempo que mediou entre o sucedido e a compensação 
– 9 meses – foi também absolutamente recorde no sistema português, onde há casos que chegam a arrastar-se décadas.

MORTE DE EDITORA 
DE LOBO ANTUNES

No final de 2008, Tereza Coelho, então com 49 anos, procurou ajuda na urgência do hospital da CUF Descobertas, em Lisboa, mas foi enviada para casa com um diagnóstico de amigdalite. Afinal, sofria de uma pneumonia grave, que acabaria por provocar uma septicemia e a morte da ex-jornalista do Público, mulher do escritor Rui Cardoso Martins e editora de António Lobo Antunes. O caso judicial, noticiado em primeira mão pela VISÃO, acabaria por levar à condenação do hospital do Grupo Mello, obrigado a pagar uma indemnização de cerca de 300 mil euros. A sentença de 2015 foi considerada inédita pelos juristas por se basear na noção de “perda de chance”. Mais do que demonstrar se um profissional foi negligente, a juíza do Tribunal Cível de Lisboa considerou provado que não se fez tudo para salvar uma vida.

E se fosse consigo?

Acha que foi vítima de erro ou negligência médica, mas não sabe o que fazer? É natural. As regras são complexas, diferentes para público e privado, e são poucos os hospitais disponíveis para apoiar quem se quer queixar. Mas há alguns passos que deve seguir.
1. Se pretender apenas alertar para algo que julga não ter corrido bem
a) Reportar a situação no livro de reclamações ou no gabinete do utente
b) Apresentar queixa na Entidade Reguladora da Saúde
c) Apresentar queixa na Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (neste caso, a inspeção vai encaminhar o caso para que o hospital onde sucedeu responda, o que torna inútil a replicação das queixas às várias entidades)
2. Se pretende ser 
indemnizado pelo dano 
que lhe foi causado
a) Apresentar queixa no Ministério Público (o sistema português ainda não prevê compensações pelo dano se não for provado crime)
b) Contratar um advogado (indispensável) para entrar com a ação em tribunal
c) Expor o caso à Ordem dos Médicos (daqui decorrerá apenas sanção disciplinar, mas pode ajudar a argumentação de culpa do profissional em tribunal)
3. Se o erro ocorreu 
num serviço público
a) Terá de correr em Tribunal Administrativo, como acontece se alguém se queixar de um professor ou de qualquer outro funcionário público. 
A lei portuguesa não prevê procedimentos diferentes para queixas na saúde e encara os hospitais como qualquer outro serviço estatal
b) Tem apenas 3 anos para apresentar queixa
c) O queixoso tem de demonstrar que quem o atendeu no serviço público não procedeu bem e provar o nexo de causalidade entre a ação dos profissionais e o dano
4. Se o erro ocorreu 
num serviço privado
a) Apresentar queixa em Tribunal Cível (para apurar responsabilidade civil, e não criminal, ao contrário do que acontece com os serviços estatais)
b) Tem 20 anos para decidir se quer 
ou não avançar com a queixa
c) Serviços privados em questão é que têm de provar que fizeram tudo corretamente
(Artigo publicado na VISÃO 1244, de 5 de janeiro de 2017)

Top de horrores dos erros médicos em Portugal

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    Os casos apontados podem servir para o objectivo do artigo em questão, mas alguns deles, tal como estão descritos, nada explicam e, sobretudo, contribuem para a confusão entre algo que o Prof. Fragata referiu: a diferença entre "erro honesto" e "erro negligente". A doente que morreu com septicemia após uma operação supostamente "simples": um cancro do cólon! Acaso o autor do artigo não sabe que, tal como todas as intervenções ao cólon, o risco de infecção local/generalizada está sempre presente, mesmo numa intervenção executada de forma perfeita? Que não é por acaso que os doentes assinam um termo de responsabilidade para todas as intervenções cirúrgicas (e outros procedimentos médicos) onde são explicados os riscos e potenciais complicações, que são, assim,


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        és um candidato a nobel. uma pergunta: se o prejudicado fosse um juiz/deputado/alto politico deste paisinho a culpa morria solteira??? isto é um mundo serio. não é um mundo do não sei e não me lembro. lembra-te que há muita gente que não acredita em garotos nem é analfabeto como nos querem fazer crer!!!!!!!!!!!!!


      •  partilhados entre equipa médica e o doente? Ou seja, o facto de um doente ter falecido no decorrer de uma intervenção que se pretenderia "sem história" de modo nenhum implica que houve negligência ou erro grosseiro. Cada caso é um caso e só após uma investigação é que se pode apurar se ocorreu falha punível. E sobre a eventual falha, o artigo nada menciona, apenas lança a informação de que o médico trabalhava em vários sítios e só pôde fazer a cirurgia à noite, que é como quem diz, estava cansado e fez porcaria. Quer dizer, quando se fazem filmes de médicos exaustos a dormir nas urgências, os médicos são uns bandidos, mas a ninguém lembra que o problema está nas horas seguidas a trabalhar sem descanso, mas para justificar um caso na privada, já é um factor censurável...
        Quanto ao caso do doente que sofreu um AVC quando se parou a anticoagulação, não percebi muito bem o que aconteceu. É evidente que um doente com hemorragia grave activa tem de parar a anticoagulação! E, sem esta, pode acorrer o acontecimento que se pretendia, precisamente, evitar! Mas é assim mesmo, não há volta a dar. O correcto seria, então, face a uma hemorragia activa, manter a antocoagulação, promovendo, dessa forma, a hemorragia? Ou o problema esteve na marcação da consulta após a alta? Mas então, foi um problema burocrático ou médico? O mais perturbador e que não gostei no artigo, foi a ideia que "se o resultado não foi o esperado, alguém fez asneira e tem de pagar" o que está a léguas do que é a realidade.
        Os aspectos positivos do artigo são as declarações do prof. Fragata, a explicação sobre o que fazer em caso de suspeita de erro grosseiro ou negligência médica e a exposição das dificuldades que as instituições levantam para a obtenção de informações, o que não deve nunca ser aceite por quem quer que seja.



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