sexta-feira, 30 de junho de 2017

Ex-pacientes de nutrólogo preso em Florianópolis relatam prescrição de medicamentos sem critério



Emagrecimento

Ex-pacientes de nutrólogo preso em Florianópolis relatam prescrição de medicamentos sem critério

Omar César Ferreira de Castro é o médico que mais receita sibutramina em Florianópolis; Combinação de algumas substâncias controladas não é recomendada pelo Conselho Regional de Farmácia 


A conduta do nutrólogo Omar César Ferreira de Castro, 66 anos, foi colocada em xeque na semana passada, quando a Polícia Civil cumpriu mandado de prisão temporária, busca e apreensão de equipamentos no consultório onde ele atendia cerca de 70 pessoas por dia, no centro de Florianópolis. Depois que o médico foi encaminhado ao Complexo Penitenciário da Agronômica, devido à suspeita de ter cometido crime sexualcontra mais de 30 mulheres, ex-pacientes relataram ao Diário Catarinense outro problema, que o Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC) relaciona à ética médica: prescrição sem critérios de medicamentos controlados para emagrecer.

Sem revelar números, a Secretaria de Saúde de Florianópolis garante que Castro é o maior prescritor do inibidor de apetite sibutramina na Capital. O uso da substância é regulado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), somente nas dosagens de 10 e 15 miligramas por dia, para pacientes obesos com índice de massa corpórea (IMC) superior a 30 kg/m², em um prazo máximo de dois anos e associado a dieta e atividade física.

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O CRM-SC afirma que nenhum dos três processos ético-profissionais instaurados contra Castro está relacionado às receitas de remédios de tarja preta, como a sibutramina. O relato de ex-pacientes também não motivou o registro de boletins de ocorrência na Polícia Civil. Mas a página do DC no Facebook recebeu 36 comentários e sete mensagens privadas acerca do estímulo ao consumo das drogas sem que os pacientes tivessem histórico investigado e exames avaliados.

Quando consultou pela primeira vez com o doutor Omar, Ana*, que mede 1m59cm, conta que pesava 69 quilos. Mesmo com IMC de 27,29 kg/m², a jovem de 23 anos que mora em Florianópolis obteve uma receita de cloridrato de sibutramina (15 mg), fluoxetina (22 mg) e bupropiona (160 mg), além de um composto de crisina (150 mg), rutina (50 mg), vitamina E (200 ui), hidroclorotiazida (20 mg) quercetina, cafeína (100 mg) e goji berry. Ela reconhece ter procurado o nutrólogo pela fama de receitar facilmente medicamentos controlados.

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– Fui para que ele me receitasse a sibutramina. Ele não pediu exame, nem perguntou se alguém na minha família tinha hipertensão ou problemas psicológicos. Só imprimiu as receitas e uma espécie de dieta, que depois eu soube ser igual para todos – conta a paciente.

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Ana* e o médico assinaram, juntos, um documento formulado pela Anvisa, o “termo de responsabilidade do prescritor para uso do medicamento contendo a substância sibutramina”. No termo, fica claro que a droga é contra-indicada em sete casos, entre eles, IMC menor que 30 kg/m² (veja outras contraindicações ao lado).

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– Com a obrigatoriedade da receita azul B2 (exigida para comercialização da sibutramina), todos os pacientes assinam o termo e precisam estar dentro dos critérios de indicação em bula – explica o presidente da Sociedade Brasileira de EndocrinologiaAlexandre Hohl.

Ana* tomou metade da dose recomendada pelo médico por quatro dias. No quinto, parou e jogou boa parte pelo ralo.

Maria*, outra ex-paciente de Castro, já havia tomado a substância aos 17 anos, acompanhada de um nutricionista. Mas foi com a dose e as combinações prescritas por Castro que sentiu os efeitos: tontura, calor, palpitação, confusão, dificuldade em completar um raciocínio.

– Fiquei com muito medo de tudo. A gente quer o mais prático para emagrecer, não é? Sempre fui consciente dos riscos, mas tem muita gente que não é e pode morrer – conta.

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A Resolução da Diretoria Colegiada de número 58, publicada pela Anvisa em 2007, proíbe a associação de anorexígenos (sibutramina) a diuréticos (hidroclorotiazida) e a outros medicamentos. O farmacêutico Rodrigo Michels Rocha, especialista em farmácia bioquímica e magistral e membro do Conselho Regional de Farmácia de Santa Catarina (CRF-SC), alerta sobre os riscos dos medicamentos acumulados pelas pacientes.

– A associação de sibutramina e fluoxetina deve ser evitada ao máximo, pois pode desencadear a síndrome serotoninérgica, que é um excesso de serotonina no organismo. O quadro clínico inclui delírios, ansiedade, diarreia, vômitos, tremores e rigidez muscular, por exemplo, podendo levar o indivíduo ao óbito – avalia.

A defesa de Castro não quis se manifestar sobre os relatos. A administração da clínica também não atendeu a reportagem.

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Fiscalização aplicada nas farmácias ajuda a coibir alta dosagem e diminui risco a pacientes

A comerciante Maria*, 27 anos, que vive em Palhoça, consultou-se com o nutrólogo em meados de janeiro. Também foi atraída pela promessa de emagrecimento rápido a partir de medicação. Com as receitas de sibutramina (15 mg) e bupropiona (160 mg) em mãos, procurou a farmácia de manipulação.

– Não fui até a que ele indicou. Preferi uma que conheço há anos. Quando fui buscar, o farmacêutico me disse que eu deveria tomar só uma dose por dia, em vez de duas, conforme prescrito – diz ela.

É esse trabalho de zelo pela ética no exercício profissional que o CRF-SC diz que vem garantindo por meio de fiscalização. Conforme a presidente Hortênsia Müller Tierling, fiscais do órgão visitam pelo menos uma vez por mês cada farmácia do Estado:

– As fiscalizações são diurnas, noturnas e também aos finais de semana para verificar se o estabelecimento farmacêutico cumpre com a determinação federal de ter um farmacêutico durante todo o horário de funcionamento.

A representante acrescenta que cabe ao farmacêutico avaliar o critério legal e técnico dos receituários e informar ao paciente a possibilidade de dispensação ou manipulação.

– Caso seja uma concentração acima da que é aceita e seguida pelos estabelecimentos farmacêuticos, essa receita não é dispensada. Se for um medicamento manipulado, o profissional não deve manipular. E deve encaminhar o paciente de volta ao profissional prescritor para que ele verifique o que aconteceu. Em alguns casos, o farmacêutico faz contato com o prescritor e informa sobre o risco ao paciente – explica Hortênsia.

Mas, conforme um farmacêutico ouvido pelo DC, que relata receber alto número de receituários do nutrólogo, o consultório de Castro não era aberto ao contato feito pelos estabelecimentos.

– Precisei, algumas vezes, falar com ele para checar a dosagem, quando julguei que tinha acontecido um erro. Nunca consegui. As atendentes diziam que ele não falaria e orientavam os pacientes a retornar ao consultório. As receitas são praticamente as mesmas para todos os pacientes – diz.

Caso o estabelecimento não apresente regularidade técnica, o CRF-SC ainda pode oferecer denúncia ao Ministério Público ou acionar a Vigilância Sanitária do município.

– Além das inspeções no local, a Vigilância Sanitária fiscaliza e controla, através de sistemas de informação, se as receitas de sibutramina estão sendo prescritas e aviadas dentro dos padrões legais, ou seja, em quantidades e concentrações máximas permitidas – garante o gerente de Vigilância Sanitária de FlorianópolisArtur Amorim Filho.
Sibutramina foi receitada para criança de nove anos

A história de Clara*, 45 anos, moradora de Palhoça, é comum a outras pacientes do nutrólogo. Queria emagrecer e, sem sucesso com dietas feitas por conta própria, decidiu buscar um profissional. Orientada pelo plano de saúde, marcou consulta com o médico que, apesar de não exigir exames nem investigar seu histórico, receitou-lhe sibutramina.

No caso dela, o diferencial está no filho, na época com nove anos. Também acima do peso, ele recebeu a mesma medicação – proibida para crianças e adolescentes. Efeitos colaterais levaram mãe e filho para a emergência do hospital.

– Eu tive palpitações e cálculo renal. Meu filho apresentou tremores, crise de hipertensão e arritmia – recorda.

Clara* conta que foi orientada por outro médico a suspender a medicação. O profissional explicou que no composto manipulado havia ansiolítico – droga sintética utilizada para diminuir a ansiedade – e que só deveria ser usado mediante exames. Entre os efeitos colaterais estão também insônia, tontura, náuseas, dor de cabeça, boca seca e dor no peito.

– Na época (2013), pensei em levar o caso para o CRM, mas a gente sabe que fica tudo acobertado – conta.

O presidente do CRM-SC, Antônio Silveira Sbissa, garante que as denúncias feitas ao conselho são levadas adiante.

– Nesse caso, inclusive, teria substrato para julgamento, porque está relacionado à ética médica. Temos pelo menos 11 conselheiros atuando em duas câmaras: de julgamento e de processo. É uma base de seis processos por semana sendo julgados. A maioria das denúncias tem origem no relato escrito e assinado por pacientes – estimula.

Tempo depois, Clara* se submeteu a cirurgia bariátrica e considera o resultado positivo. O filho é acompanhado por um cardiologista infantil e por um endocrinologista e, hoje, o cuidado se faz com controle da alimentação.

*Os nomes foram alterados a pedido das pacientes. 
Como denunciar má conduta médica ao CRM
1 - Escreva um documento relatando os fatos ocorridos;
2 - Inclua nome(s) do médico(s) denunciado(s);
3 - Inclua data e local do ocorrido;
4 - Inclua identificação completa do denunciante (nome completo, CPF, endereço e números de telefones - residencial, comercial e celular), bem como a assinatura no documento;
5 - Caso tenha um paciente envolvido, inclua completo.
6 - Caso tenha provas, anexe.
7 - Apresente a denúncia assinada e documentada ao Conselho Regional de Medicina.
A denúncia pode ser entregue pessoalmente, em alguma das delegacias regionais, na sede do CRM-SC (SC-401, Km 04, Saco Grande, Florianópolis) ou ser enviada pelos Correios.
"Não existe pílula mágica", diz Alexandre Hohl, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia
Quais grupos de medicamentos contra obesidade estão permitidos hoje no Brasil?
Hoje oficialmente nós temos liberados as seguintes classes de medicamentos com indicação em bula para tratamento de obesidade: orlistat (inibe absorção de gordura pelo intestino, não tem retenção de receita, não age no sistema nervoso central), sibutramina (depende de receituário B2 controlado, é tarja preta e o médico tem que se cadastrar na Vigilância Sanitária de cada município) e a liraglutide (injeção de remédio usado para diabetes), que está em avaliação na Anvisa, deve ser liberado nos próximos dias. 
As anfetaminas seguem proibidas?
Foram considerados pela Anvisa medicamentos que não deveriam mais ser comercializados há alguns anos. Não poderia ter anfetamina em farmácia comum ou de manipulação. Foi uma decisão um tanto arbitrária da Anvisa. As sociedades médicas foram contrárias. Porque anfetamina tem efeito colateral, sim, mas vários remédios têm efeitos colaterais. O que precisava era ter um controle da prescrição.

Mas há quem ainda consiga...
Se algum médico prescreve e algum paciente consegue, é porque alguma farmácia manipula. Se as doses permitidas de sibutramina são 10 e 15 miligramas, como que um farmacêutico formado permite manipular doses acima de 15? A manipulação é um buraco negro. Precisava haver fiscalização de maneira rigorosa nas farmácias de manipulação quanto ao uso e à formulação desses medicamentos manipulados.

Qual é a semelhança entre os remédios proibidos e permitidos? 

Sibutraminas e anfetaminas têm efeitos adversos parecidos. Boca seca, acelera o coração, insônia, irritabilidade. Entretanto, os efeitos adversos das anfetaminas como regra eram maiores, mais intensos, do que com a sibutramina. Então a gente vê na prática que menos pacientes reclamam dos efeitos adversos da sibutramina. Se banalizou o uso da anfetamina por médicos não especialistas. Perdeu-se o critério. Com isso, se aumentou muito os efeitos colaterais, o que preocupou a Anvisa — e ela tinha razão nisso. Só que quem precisa, hoje, não pode usar porque foi retirado do mercado. A banalização da sibutramina também vem com tudo.

Por que tantas pessoas recorrem à medicação? 

A obesidade e o sobrepeso são problemas populacionais. Em geral, a gênese está no estilo de vida: as pessoas comem mal, não fazem exercício físico e tem um nível de stress alto. Então não adianta querer achar uma pílula mágica que vai solucionar. Nenhuma delas é mágica. São remédios e como qualquer remédio têm efeitos colaterais.

Dieta e atividade física devem ser associadas aos remédios?
Na verdade, deve ser o contrário. A dieta e a atividade física são pilares do tratamento da obesidade. Quando necessário for, medicamentos são associados. Essa é a lógica.

Existe uma especialidade médica mais capacitada para prescrever esse tipo de medicação?
Remédio só pode ser prescrito por médico. Qualquer médico pode fazer qualquer tratamento médico. O médico que foi treinado e habilitado para tratar a obesidade foi o endocrinologista. O nutrologista é um médico que teoricamente também vai participar desse processo, mas trabalha muito com a questão alimentar, essa é que é a ideia da nutrologia, como o próprio nome diz. Mas "outras especialidades" é o que mais aparece como prescritores de sibutramina. Isso é algo que cabe à fiscalização.

O que deve ser feito antes de receitar remédio para emagrecer?
Primeiramente, devemos fazer uma anamnese para ver se é alguma doença que está causando o ganho de peso. A partir daí vai ser classificado o ganho de peso: sobrepeso, obesidade grau I, obesidade grau II ou é uma obesidade mórbida. Depois, vai ser feito exame físico e vão ser solicitados exames complementares para tirar dúvidas das suspeitas diagnósticas: diabete ou tireoide, por exemplo. Exames vão trazer informações se existe alguma doença ou não e se vai ter segurança de uso de algum medicamento caso seja necessário. Então são feitas análises de exames sobre fígado, sobre rim, tudo isso a gente consegue fazer em exames de sangue comuns. Prescrever qualquer remédio para emagrecer sem boa consulta e nenhum exame complementar é má prática médica.

O médico pode indicar alguma farmácia? 
Cabe a cada um entender que quando alguém prescreve algo codificado ou indica uma farmácia, fique com pé atrás. Tem que questionar. É simples.
*Colaborou Ângela Bastos

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