domingo, 28 de junho de 2020

Médicos e enfermeiros são alvos de ao menos 79 denúncias

Denúncias feitas aos conselhos regionais devem ser apuradas, podem virar processos éticos e gerar penalidades aos profissionais. Pelo menos seis processos éticos sobre o assunto já estão em andamento. Compartilhamento de informações falsas é um dos perig.

BRASILDomingo, 28 de junho de 2020, 08:58 - A | A
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Um levantamento feito pelo G1 revela que ao menos 79 denúncias foram registradas contra médicos e enfermeiros por divulgação de fake news ou 'curas milagrosas' durante a pandemia do novo coronavírus. Em 40 casos, foram abertas sindicâncias para apurar a denúncia; em seis, já há processos éticos.
Para o levantamento, o G1 entrou em contato com as assessorias de todos os 27 conselhos regionais de medicina e dos 27 conselhos de enfermagem e também mandou um pedido para cada um deles por meio da Lei de Acesso à Informação. Isso porque os conselhos federais informam que não têm números consolidados.
Das 79 denúncias, 59 foram registradas pelos conselhos regionais de medicina e 20 pelos de enfermagem. Os conselhos regionais de medicina também registram a maior parte das sindicâncias (36 de 40) e dos processos éticos (5 de 6). Em 20 de março, o Conselho Federal de Enfermagem suspendeu por dois meses os prazos para os procedimentos por causa do isolamento social.

A maioria dos conselhos regionais, porém, não dá detalhes sobre denúncias, sindicâncias ou processos éticos

Parte das denúncias recebidas pelos conselhos regionais gerou interdição temporária das atividades profissionais, como no caso do médico Joaquim Rocha Pereira. Em vídeo publicado nas redes sociais, ele afirmou que a mutamba, uma planta encontrada no Cerrado, pode prevenir a Covid-19 – o que é mentira – e também divulgou mensagens minimizando a pandemia e criticando as medidas de prevenção.
O CRM do Tocantins decidiu interditar a atuação profissional dele e proibiu o exercício na área por seis meses. Na época, o médico reafirmou o conteúdo dos vídeos e disse que pretendia entrar com uma ação para derrubar a decisão do conselho.
Já a médica Isabella Resende Abdalla, de Ribeirão Preto (SP), foi afastada temporariamente do exercício da profissão porque anunciava e vendia um "soro da imunidade" como solução para a doença. Não é verdade que a soroterapia combate o coronavírus.
O advogado de Isabella disse que ingressou "com recursos administrativos e judiciais contra o afastamento imposto" e que a "decisão foi alterada, quase que por unanimidade, pelo Conselho Federal de Medicina no fim de maio, permitindo que a médica voltasse aos seus atendimentos".
No Distrito Federal, o médico Pedro Henrique Leão oferecia um kit com "imunidade de leão" contra a Covid-19 e também foi proibido de atuar na profissão por decisão do conselho regional. Os medicamentos chegavam a custar R$ 1,3 mil.
Na internet, Leão negou que tenha feito promessas em relação à cura do novo coronavírus. A defesa do médico disse ainda que a suspensão foi "precipitada e desproporcional" e que vai tentar reverter a decisão.
Já o enfermeiro Anthony Ferrari, que mora em Cabo Frio e é investigado pelo Conselho Regional do Rio de Janeiro, publicou vídeos nas redes sociais afirmando que estados e municípios recebem dinheiro do governo federal por paciente morto com a Covid-19.
Ainda segundo ele, os valores chegam até R$ 19 mil. Ferrari disse ainda que cerca de 60% das mortes da Covid-19 são de pessoas que "morreram por estar assustadas", "morreram porque muitos falaram para ficar em casa".
O Fato ou Fake já checou essa informação falsa e mostrou que isso não é verdade.
Em nota, o enfermeiro disse que não tem condenação no conselho regional nem no conselho federal. "O que acontece é que esquerdopatas ficam fazendo denúncias por eu estar denunciando a corrupção, estar denunciando o terrorismo que eles estão colocando para poder usar o vírus para se promover."
 A maioria dos conselhos regionais, porém, não dá detalhes sobre denúncias, sindicâncias ou processos éticos.
'Fake news' de jaleco
Apesar dos números revelados pelo levantamento, o G1 identificou pelo menos dois médicos que estão em situação "regular", segundo o site do Conselho Federal de Medicina, e gravam vídeos com informações falsas, sem qualquer embasamento científico e alcançam milhares de visualizações.
Normalmente, quando é aplicada alguma medida pelo conselho, esse status no site muda de "regular" para "interdição cautelar", "suspensão temporária" ou até "cassado".
Um dos médicos é Marcos Nunes Andrade, que se autodenomina Dr. Marcos da Amazônia, morador de Santarém, no Pará. Em um canal no YouTube, ele disse em 5 de abril deste ano que os hospitais estavam vazios. "Tá tudo vazio [referindo-se aos hospitais]. Cadê os doentes que estão mandando ver na mídia da morte? Tá tudo vazio."
No mesmo vídeo, que registra mais de 600 mil visualizações na publicação original, ele afirmou ainda: "A cloroquina cura. A cloroquina cura. Porque ela é associada ao sulfato de zinco, aquele que vai destruir o coronavírus. Agora, a cloroquina serve como veículo para o sulfato de zinco." Vários estados relataram a superlotação dos leitos de UTI e não há comprovação científica quanto à eficácia e à segurança no uso de cloroquina em pacientes com a Covid-19.
O médico Marcos Andrade foi procurado pelo G1 e não respondeu aos questionamentos.
O Conselho Regional de Medicina do Pará não informa se alguma denúncia contra o médico foi registrada ou se alguma penalidade já foi aplicada em razão dos vídeos. A inscrição do profissional no site do Conselho Federal de Medicina consta como "regular" – e não "interdição cautelar" ou "suspensão temporária", por exemplo.
"Os dados relativos a possíveis procedimentos administrativos não podem ser fornecidos pelos conselhos regionais de medicina em razão da necessidade de evitar pré-julgamento ou quebra de sigilo, qualquer que seja a situação questionada", diz a nota do conselho regional.
Já o médico João Carlos Luiz Vaz Marques Leziria, ou Dr. João Vaz, teve pelo menos dois vídeos com fake news compartilhados na internet. No primeiro, ele passou o próprio celular e se ofereceu para fazer receitas médicas, inclusive para a compra da hidroxicloroquina – um medicamento não comprovadamente eficaz e seguro para a Covid-19.
Além disso, ele também disse que os respiradores estão sendo usados em hospitais públicos apenas para justificar as compras. "Falem comigo, eu dou a receita para vocês comprarem em qualquer farmácia. Nós temos azitromicina, um antibiótico para as vias respiratórias superiores, em conjunto com a hidroxicloroquina."
Outro vídeo com conteúdos falsos ditos por João Vaz já foi checado pelo Fato ou Fake. O médico disse para as pessoas não usarem máscara caso não estejam falando com alguém ou estejam andando na rua. Ele afirmou ainda que o uso de máscara de proteção faz mal à saúde tornando o sangue mais ácido.
As afirmações do médico são contestadas por especialistas e também pelo Ministério da Saúde. Além disso, o uso da máscara é recomendado pelas autoridades de saúde para evitar disseminação da doença e não traz perigo para as pessoas.
Apesar dos vídeos, o site do Conselho Federal de Medicina mostra que a inscrição de João Vaz está "regular" – e não "interdição cautelar" ou "suspensão temporária", por exemplo.
O médico João Vaz foi procurado e reafirmou tudo o que disse no vídeo.
O Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro não informa se alguma denúncia contra o médico foi recebida ou mesmo se qualquer penalidade foi aplicada. Na nota, o conselho diz que "existe um rito para se respeitar, inclusive, com o direito à ampla defesa" e que "se houver uma denúncia, ela vai ser enviada ao médico para que ele possa se explicar".
"Neste caso, um sindicante conselheiro vai avaliar se há algum indício, juntar as provas como um processo similar a um rito jurídico. Não é possível ter uma resposta rápida. E, agora, estamos nesse momento de restrição. O setor de processos ainda está se adequando para a reabertura. Então, se houver alguma denúncia, ela será apurada e, após todas as verificações necessárias, será dada a finalização do processo."
Maior credibilidade
Além disso, também circulam nas redes sociais áudios, vídeos e mensagens que apenas usam os nomes de profissionais de saúde. Os profissionais, porém, são vítimas, já que não produziram o conteúdo e só tomaram conhecimento após a viralização do material. O Conselho Regional de Medicina de Goiás, por exemplo, informou que foi procurado no fim de março por uma médica que "teve o nome indevidamente vinculado a um áudio falso veiculado em grupos de WhatsApp com informações incorretas sobre a pandemia".
O Fato ou Fake já checou também mensagens falsas que envolvem profissionais da saúde. Entre elas estão um video com a alegação de que uma equipe médica forjou um caso da Covid-19 em São Paulo e uma foto que dizia que um profissional estava segurando um caixão com apenas dois dedos e enterrando caixões sem corpos em Manaus.
Em outra desinformação, um vídeo feito por uma enfermeira foi tirado de contexto e passou a ser compartilhado como se fosse novo, mostrando uma UTI vazia em Salvador, na Bahia. No entanto, a gravação era de 21 de março, e não de 21 de abril, quando se tornou viral. A mensagem dizia ainda que a enfermeira foi demitida após ter "denunciado" a farsa do novo coronavírus, o que também não era verdade, como mostrou a checagem do Fato ou Fake.
O cenário da pandemia da Covid-19 também foi aproveitado por falsos médicos, que tentaram lucrar com fórmulas milagrosas para combater a doença.
Durante a pandemia, também precisaram ser checadas ou até foram alvos de investigações dos órgãos públicos outras várias falsas curas milagrosas da Covid-19, como as do feijão milagroso, do chá de artemísia, da aplicação do ozônio e da mistura de limão com bicarbonato, entre outros.
A Organização Mundial de Saúde fez um alerta em fevereiro deste ano do risco da infodemia, com o alto volume de informações que dificulta o acesso a fontes e orientações confiáveis.
Em 14 de maio, profissionais e organizações de saúde de vários países lançaram uma campanha internacional pedindo ações para combater informações falsas divulgadas na internet sobre a pandemia do novo coronavírus.
Punição a profissionais
O presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Ribeiro, e o diretor do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) Gilney Guerra lembram que médicos e enfermeiros precisam seguir o código de ética das categorias. Caso os profissionais não cumpram as regras, eles podem sofrer penalidades.
Segundo Guerra, a medida adotada pelo conselho depende da gravidade da denúncia, da veracidade dos fatos, do dano que causou ao terceiro, dos antecedentes profissionais, entre outros. São possíveis penalidades:
Advertência verbal
Multa em dinheiro
Censura (manifestação do conselho censurando o ato no Diário Oficial e num jornal de circulação)
Suspensão temporária do exercício profissional
Cassação do exercício profissional

Guerra lembra ainda que a resolução 544 de 2017 do Cofen respeita a liberdade de expressão dos enfermeiros, mas define critérios para uso e comportamento dos profissionais nas redes sociais. Entre os itens proibidos pelo conselho estão a divulgação de fotos de pacientes sem o consentimento deles nas redes sociais; a propaganda de método ou técnica sem comprovação científica e que esteja vedado pela legislação de enfermagem vigente; e a adulteração de dados estatísticos.
"O profissional de saúde tem que se basear nas evidências científicas. Quando ele divulga algo baseado em um estudo que foi publicado por uma revista e que traz uma fonte de informação, ele não pode ser censurado. Mas quando o profissional de saúde traz à tona determinadas recomendações que não têm evidência científica, não são recomendadas por autoridades sanitárias do país, como secretarias estaduais, Ministério da Saúde, ou mesmo OMS, ele está fazendo na verdade um desserviço. Ele está trazendo desinformação", diz o diretor do Cofen e professor de enfermagem do Centro Universitário do Planalto Central (Uniceplac).
O presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Ribeiro, reforça que os médicos também devem checar se as fontes são confiáveis antes de compartilhar ou produzir conteúdo para divulgar nas redes sociais.
"Como profissionais, recomenda-se aos médicos que usem as redes sociais dentro dos limites estabelecidos pelo Código de Ética Médica, ou seja, com o uso de informações validadas cientificamente e no intuito de promover a adoção de comportamentos e hábitos saudáveis. Não é recomendável aos médicos e a qualquer outra pessoa distribuir informações sem que as fontes sejam confiáveis", diz Mauro Ribeiro, presidente do CFM.
Ribeiro acrescenta ainda que qualquer pessoa que identifique situações em que o médico descumpra o código de ética "pode apresentar sua queixa no Conselho Regional de Medicina do estado onde ocorreu a situação que considerou irregular". "É importante, mas não obrigatório, juntar documentos, imagens e outros documentos. Com base nisso, o CRM que vai apurar o assunto e tomar as medidas cabíveis."
Guerra lembra que a denúncia pode ser feita tanto pelo site quanto presencialmente nos conselhos regionais. "Todos os conselhos regionais têm que averiguar as denúncias. Qualquer cidadão pode preencher o formulário no site e também ir diretamente à sede dos conselhos. A denúncia anônima é vedada", afirma.

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