sábado, 29 de julho de 2017

Vítimas de erro médico não sabem a quem recorrer

Sáb , 07/10/2006 às 16:53

Vítimas de erro médico não sabem a quem recorrer

Vitor Pamplona
   
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“O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano, ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade”. 



O princípio fundamental disposto no Código de Ética Médica pode parecer irônico para vítimas de negligência, imperícia ou imprudência de profissionais da área. Mas nada comparável à discrepância entre o número de denúncias de erro médico registrado pelo órgão regulador do exercício profissional e o de queixas encaminhadas à Justiça. Responsável pela instauração do processo para verificar a existência de lesão corporal, o Ministério Público recebe por mês de 15 a 25 denúncias, quase um terço do número registrado no mesmo período pelo Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb), que apura infrações ao código de ética da profissão – 40 a 60 casos chegam ao conselho mensalmente. 
Entre os principais motivos para a diferença na estatística está a pouca informação de famílias de pacientes a respeito das instâncias em que a denúncia deve ser feita, dizem Wanda Valbiraci, promotora do Núcleo de Apuração de Crimes Relativos a Erros Médicos na Área de Saúde (Nacres) e Marco Antonio Cardoso de Almeida, corregedor do Cremeb. “Muita gente procura o conselho imaginando que o médico vai ser preso”, explica Almeida. Na verdade, a pena máxima que o órgão pode impor é a cassação do registro.
Há três anos dedicada à área de erros médicos, Valbiraci afirma que a crença nas atribuições penais do Conselho de Medicina é comum entre familiares de vítimas. “As pessoas não sabem que é competência do MP verificar a existência de infração penal”, diz. A idéia de que o médico pode ser preso pelo exercício inadequado da profissão não passa também de lugar-comum, ela afirma. “O erro médico é lesão corporal culposa, para a qual não cabe pena de detenção. Por ser considerado crime de menor potencial ofensivo, o juiz geralmente converte a punição em penas alternativas, como serviços comunitários”.
Ministério Público e Cremeb possuem um convênio para trocar informações sobre denúncias, mas Marco Antonio Almeida diz que quase sempre os casos relatados pelo MP são registrados antes no conselho. Segundo ele, as áreas mais atingidas são obstetrícia, ortopedia e oftalmologia. Já a promotora Valbiraci elenca a ortopedia, emergência e falta de leitos.
Burocracia - Além da diferença no número de denúncias, Ministério Público e Cremeb possuem quantidade desigual de processos acumulados (até o fim de setembro, 356 no conselho, contra 106 no MP). Para o corregedor Almeida, a culpa é do número insuficiente de conselheiros para cuidar dos casos. “Estamos abarrotados de processos porque, desde 1947, a quantidade de conselheiros que cuidam do julgamento dos casos não mudou. Mesmo com o aumento da população e do número de médicos, continuam a existir apenas 42 responsáveis”. 



O tempo de duração de um processo no Cremeb, de três a cinco anos, também é bastante superior ao registrado Justiça, onde uma sentença pode sair em questão de meses se a ação for ingressada no Juizado Especial. Em alguma medida, a demora é explicada pela burocracia. Um processo só é instalado depois de realizada uma sindicância e pode ter mais de uma instância recursal, a depender se a decisão da câmara de julgamento do caso for ou não unânime. Nessa hipótese, o médico investigado pode recorrer apenas ao Conselho Federal de Medicina. Se for por maioria, o processo é novamente apreciado pelos conselheiros, desta vez em sua totalidade. Em ambas as alternativas, porém, um novo julgamento pode demorar por mais cinco anos. 



O resultado da burocracia pode ser medido pelo número de condenações nos últimos três anos: foram 23 censuras públicas, 6 suspensões de registro por 30 dias e 2 impedimentos cautelares, pelos quais os médicos ficam proibidos de exercer a profissão enquanto o processo não tiver uma sentença, pelo volume de denúncias. A punição foi submetida este ano aos cirurgiões plásticos Bruno Molinari e Isabella Natali, cujos casos de lesões causadas em pacientes tiveram repercussão nacional. Mas nenhuma cassação de registro foi feita pelo Cremeb. 



“A cassação do registro equivale à pena de morte para o médico. É preciso apurar com rigor os fatos e ter certeza da irregularidade antes de o conselho tomar esta decisão”, acredita Almeida, que rebate críticas de corporativismo da categoria. “Desde que estou no Cremeb, não tenho visto corporativismo. As pessoas confundem esta prática com a necessidade de sigilo do trabalho, afinal, a carreira de profissionais pode estar em jogo”. 



Dificuldade - As dificuldades para comprovar a responsabilidade ética e criminal de médicos pode ser ilustrada com o caso da funcionária pública Márcia Matos. No dia 4 de abril de 2003, seu filho Paulo Ivo Matos, então com 23 anos, sofreu um acidente de carro na avenida D. João 6º, em Brotas. Ele foi levado, com fraturas nos braços e coxas, ao Hospital Geral do Estado (HGE) e posteriormente a uma clínica particular, onde foi submetido a uma cirurgia. “Ele estava consciente e conversava normalmente”, conta Márcia. 



Depois de ter passado pelo procedimento, ele foi transferido para a UTI, onde a família desconfiou do estado de Paulo Ivo e convidou uma médica conhecida para visitá-lo. Contrariando o diagnóstico da clínica, ela teria suspeitado de coma profundo e recomendou um exame neurológico. Imediatamente, Márcia consultou o prontuário do filho para verificar se nele constava que Paulo Ivo era alérgico a penicilina e não poderia receber anestesia geral. O documento mencionava as restrições, mas o médico de plantão na UTI, segundo ele, teria afirmado que a substância foi aplicada durante a cirurgia e não teria causado efeitos colaterais no paciente. 



No dia 6 de abril, a família decidiu transferir Paulo Ivo para o Hospital Espanhol. Segundo Márcia, o médico responsável pela cirurgia teria dito que ele “estava ótimo” e receberia alta em breve. No hospital, Ivo foi submetido a exames neurológicos, devido a suspeita de tumor não identificado decorrente do acidente. Mas nenhuma anomalia do gênero foi encontrada. De acordo com ela, exames realizados posteriormente no hospital teriam apontado embolia (obstrução de artérias) e falta de oxigenação no cérebro, danos incompatíveis com o acidente de carro. Dias depois, um telefonema da administração da clínica a deixou ainda mais preocupada: um funcionário cobrava o pagamento de anestesia geral em seu filho. 



A denúncia do caso foi feita ao Cremeb, que orientou o médico responsável a entregar o prontuário, o que só ocorreu por meio de um liminar da Justiça. No documento recebido pelo conselho não constava aplicação de penicilina. Márcia Matos procurou também o Ministério Público, mas a denúncia não foi acolhida, segundo ela, por ter sido apresentada fora do prazo de seis meses estabelecido para a concessão de assistência judiciária. 



A única alternativa seria contratar um advogado, mas a família preferiu desistir de recorrer à Justiça por temer a demora do processo e o aumento das despesas com Paulo Ivo, submetido a sessões de fisioterapia, terapia ocupacional, hidroterapia e acompanhamento neuropsicológico para diminuir as conseqüências da cirurgia, entre elas a contração dos membros superiores e inferiores e a perda de memória. Quanto à apuração de infrações éticas pelo Cremeb, Márcia diz desconhecer se a denúncia foi transformada em processo, mas tem certeza de que o médico responsável continua exercendo a profissão. 
Três anos depois do acidente, o tratamento de Paulo Ivo resultou em melhoras: a aplicação de Botox (toxina botulínica), que enrijece os músculos, diminuiu a contração das mãos, ele voltou a falar e já consegue das alguns passos. Mas por ter dificuldade para lembrar dos movimentos, ainda passa a maior parte do tempo na cadeira de rodas. 



A reportagem tentou encontrar o médico acusado de imperícia, no entanto o Cremeb tem por norma manter sigilo absoluto sobre seus processos até a sentença.


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