quinta-feira, 21 de maio de 2020

Os riscos da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19

Indicados no tratamento da malária, medicamentos têm sido apontados como soluções para a doença causada pelo novo coronavírus. Mas isso ainda está longe de ser provado

  • MARÍLIA MARASCIULO
 ATUALIZADO EM 

No último dia 23 de abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou o uso da hidroxicloroquina para o tratamento da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2). Embora não se trate de uma recomendação, e sim uma liberação para que médicos optem ou não pelo uso do medicamento em determinados casos, a decisão do CFM aquece ainda mais o debate acerca do possível tratamento para a doença. Especialmente no Brasil, tanto a hidroxicloroquina quanto a cloroquina vêm sendo defendidas pelo presidente da república, Jair Bolsonaro, e seus apoiadores — mesmo que não existam comprovações científicas de que sejam eficazes.


Sintetizada em laboratório em 1934, a cloroquina deriva da quina, árvore usada por indígenas para curar febres muito antes da chegada dos europeus à América. Ingrediente de chás e outras receitas, entre elas a água tônica, foi com a malária que ganhou status de medicamento: descobriu-se que ela pode interferir no funcionamento dos lisossomos, organelas responsáveis pela digestão das células, e com isso aniquilar o causador da doença. “Ela se concentra no vacúolo alimentar ácido do parasita [causador da malária] e interfere nos processos essenciais”, explica o farmacologista François Noel, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Nos glóbulos vermelhos, ela se liga ao heme [átomo de ferro] formando um complexo tóxico que mata a célula e o parasita.”
Já a hidroxicloroquina é uma versão aprimorada e menos tóxica da cloroquina, indicada para tratamentos de longo prazo. Desenvolvida em 1946, ela é aplicada nas terapias de doenças autoimunes como artrite reumatoide e lúpus, além dos casos em que a malária é provocada por protozoários resistentes à cloroquina.
Em 2007, pesquisadores liderados pelo infectologista Didier Raoult, da Universidade de Medicina de Marselha, na França, fizeram testes in vitro para demonstrar que a cloroquina e a hidroxicloroquina poderiam ser usadas contra infecções bacterianas, fúngicas e virais — entre elas, o HIV e o Sars-CoV-1 (coronavírus causador da Sars, síndrome respiratória que surgiu na China em 2002) . Além de atuarem nos lisossomos e, com isso, prejudicarem a replicação do vírus (ele depende das células humanas para se reproduzir), as drogas interferem nas enzimas que convertem a proteína na cápsula do vírus (que parecem “espinhos”) e permitem a entrada nas células.
Esses dois mecanismos atuariam na diminuição da infecção. Em casos já avançados, as substâncias serviriam para inibir a reação das citocinas, moléculas que recrutam as células imunológicas para o local de infecção e, se descontroladas (na chamada tempestade de citocinas), ativam células demais em um só lugar e causam danos.
No surto do novo coronavírus, o estudo francês chamou a atenção e pesquisadores mundo afora, que resolveram testar a aplicabilidade ao Sars-CoV-2. O primeiro teste foi feito por cientistas chineses e publicado no início de fevereiro de 2020, mostrando efeitos similares aos da pesquisa de 2007. Outro, também realizado na China e divulgado em março, validou a eficácia das drogas in vitro.
Do vitro para a vida
E aí começaram as complicações. “Não entendemos por que tanto otimismo baseado em um estudo in vitro”, diz Noel, que explica que as condições em laboratório são bem diferentes das do corpo humano com seus elaborados sistemas. Para fazer esse “salto”, há muito o que se considerar: da posologia recomendada ao momento da infecção em que o uso é mais indicado (deve-se priorizar o uso no início, como profilaxia, ou em casos agudos?), até o risco de efeitos adversos da interação com o organismo.


E os riscos existem. Mesmo consideradas seguras para as suas indicações, a cloroquina e a hidroxicloroquina podem provocar problemas gastrointestinais, de visão, fraqueza muscular, sangramentos e alterações de humor. Podem ainda causar problemas cardiovasculares, o que se mostra particularmente perigoso no caso da Covid-19. “É uma doença nova, que não conhecemos bem ainda”, pondera Noel. “Já sabemos que não é só pulmonar, é também cardiovascular e pode causar insuficiência renal.”
Foi esse o motivo da interrupção de um estudo clínico que estava sendo feito em Manaus com 81 pacientes de Covid-19. Um grupo recebeu uma dose alta, e outro uma dose baixa de cloroquina, combinada a antibióticos. Depois de seis dias, 11 pacientes que receberam a dose alta morreram, e o estudo foi abortado. Os pesquisadores identificaram que a dose elevada pode levar a quadros severos de arritmia e batimentos cardíacos irregulares, determinaram que usar a cloroquina em altas doses no tratamento de Covid-19 pode ser tóxico e recomendaram que a dosagem não seja usada em casos graves da doença.
Além da pesquisa brasileira, outros estudos clínicos apontam que tanto a cloroquina quanto a hidroxicloroquina não parecem ser tão eficazes quanto se acredita no combate ao novo coronavírus. Em um artigo publicado na Canadian Medical Association Journal, o cientista David Juurlink chamou a atenção para a falta de evidências e reações adversas sérias dos medicamentos. "Apesar do otimismo (em alguns, até mesmo entusiasmo) com o potencial da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, há poucas considerações sobre a possibilidade dessas drogas influenciarem negativamente o quadro da doença", escreveu.
O Canadá é um dos países nos quais as autoridades de saúde alertaram para os perigos do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina sem recomendação médica. A Agência de Medicamentos Europeia tem um posicionamento semelhante ao do Canadá. E, em um documento divulgado no dia 21 de abril pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, representantes de 13 entidades de especialistas (entre elas, a Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos, a FDA, que autorizou o uso dos medicamentos, e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, o CDC) contraindicaram a aplicação fora de ensaios clínicos.
O próprio CFM se mostrou atento aos riscos: “Não existe nenhuma evidência científica forte que sustente o uso da hidroxicloroquina para o tratamento da Covid-19. É uma droga utilizada para outras doenças já há 70 anos, mas em relação ao tratamento da Covid-19 não existe nenhum ensaio clínico prospectivo e randomizado, feito por grupos de pesquisadores de respeito, publicados revistas de ponta, que aponte qualquer tipo de benefício do uso da hidroxicloroquina no tratamento”, disse o presidente da entidade, Mauro Luiz Britto Ribeiro, ao anunciar a decisão.
Apesar disso, o conselho optou por dar maior peso aos relatos observacionais dos médicos. "Em outra situação, muito provavelmente o CFM não liberaria o uso da droga a não ser em caráter experimental. Mas, diante dessa doença devastadora, a opção foi dar um pouco mais valor ao aspecto observacional de vários médicos, importantes e sérios."
Pressão arriscada
Para confirmar se a cloroquina e a hidroxicloroquina podem mesmo ser eficazes no contra a Covid-19 e qual a melhor forma de administração, são necessários mais estudos clínicos, e eles vêm sendo feito. O mais notável foi o de autoria do mesmo médico francês que conduziu os testes em 2007, Didier Raoult. Publicado em março no International Journal of Antimicrobial Agents, o trabalho verificou que, após seis dias de tratamento de hidroxicloroquina com azitromicina (um antibiótico), todos os seis pacientes da pesquisa foram curados, se comparados com oito de 14 pacientes tratados somente com hidroxicloroquina, e dois de 14 no grupo de controle.

Em estudo nos EUA, mortalidade foi maior entre pacientes tratados com hidroxicloroquina  (Foto: Hal Gatewood/Unsplash)
Estudos avaliam eficácia de cloroquina e hidroxicloroquina contra Covid-19 (Foto: Hal Gatewood/Unsplash)

O problema é que o teste teve muitas limitações metodológicas e não seguiu o chamado padrão-ouro. Pelas regras, um estudo deve ser randomizado (com participantes selecionados de forma aleatória), controlado (grupos aproximadamente equivalentes) e duplo-cego (tanto pesquisadores quanto pacientes não sabem quem recebe placebo ou medicamento). Isso tudo ajudaria a reduzir vieses, como o de o médico tratar os dois grupos de maneira diferente ou de um possível efeito placebo. Nada disso foi observado pelos franceses. Eles usaram um grupo comparativo de outra instituição, com idades diferentes e os cientistas sabiam quem estava tomando o remédio



Por que, então, o estudo foi recebido com tamanho entusiasmo e é citado como argumento por aqueles que apontam a cloroquina e a hidroxicloroquina como solução para a pandemia? Os motivos são muitos. O mais evidente é a urgência de encontrar uma maneira de aliviar a crise. Nos cenários mais otimistas, uma vacina ficará pronta daqui a pelo menos um ano (e já quebrando todos os recordes mundiais de produção de vacina).
Desenvolver um medicamento completamente novo leva, em geral, uma década, a um custo de US$ 1 bilhão, segundo o professor Noel. A medida mais fácil e rápida é, portanto, apostar no chamado reposicionamento de fármaco. Trata-se de buscar novas aplicações para fórmulas já existentes, algo que não é incomum na indústria farmacêutica. O caso mais famoso talvez seja o do sildenafil, comercialmente conhecido como Viagra, inicialmente desenvolvido para tratar hipertensão e reposicionado para combater impotência sexual.
O barato pode sair caro
Mas a cloroquina e a hidroxicloroquina não são os únicos medicamentos cotados para o combate à Covid-19. Ao menos outros sete passam por testes — e debates — semelhantes, entre eles os antivirais remdesivir, lopinavir e favipiravir. No Brasil e em outros países ocidentais, especialmente nas Américas, a cloroquina e a hidroxicloroquina ganharam maior foco por já estarem disponíveis e a um custo relativamente baixo, visto que a malária é endêmica na região. Cabe ressaltar, porém, que embora o Brasil produza cloroquina em larga escala, o mesmo não se aplica à hidroxicloroquina.
Toda essa pressão em torno da descoberta da cura para a Covid-19 pode ter consequências não só para os pacientes, mais expostos a perigos extras, como para a ciência. “A ansiedade para encontrar algo a curto prazo pode ser muito ruim para a ciência, porque depois [se algo der errado], a culpa pode cair na conta dos pesquisadores”, diz Noel. “É preciso muito cuidado, porque tantas expectativas podem gerar frustração que depois coloquem toda a ciência em questão.”
No momento, há algumas dezenas de ensaios clínicos que seguem a padronização científica sendo realizados em diferentes países do mundo. No Brasil os dois principais são o Solidariedade (Solidarity), da Organização Mundial da Saúde (OMS) e coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e o Coalização Covid Brasil (duas das fases usam hidroxicloroquina), coordenado pelos hospitais Albert Einstein, HCor, Sírio Libanês e pela BRICNet, rede de apoio a pesquisas científicas.


No Solidarity, 18 hospitais em 12 estados vão testar cinco medicamentos diferentes, entre eles a hidroxicloroquina e a cloroquina, em pacientes com sintomas avançados. Já o Coalizão Covid Brasil pretende usar a hidroxicloroquina em cerca de mil pacientes com Covid-19, com quadros leves ou graves. De acordo com o professor da UFRJ, a expectativa é de que os primeiros resultados destes e de outros estudos feitos mundo afora comecem a aparecer em junho. Por enquanto, melhor é esperar e continuar apostando na prevenção — isto é, distanciamento social, uso de máscaras e higiene.
Gostou da nossa matéria? Clique aqui para assinar a nossa newsletter e receba mais conteúdos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário