sábado, 20 de julho de 2024

Criança morre no Pará após aplicação indevida de medicação, e família espera por respostas há 6 meses: 'tiraram a vida dele', diz pai

 Família fala em erro na aplicação de medicamento e pede por celeridade no caso, que está sendo investigado sob sigilo.

Por Lissa de Alexandria, g1 Pará — Belém

Caso Arthur: menino de dois anos sofreu parada cardíaca após injeção de potássio diretamente na veia em hospital público do Pará — Foto: Arquivo pessoal

Caso Arthur: menino de dois anos sofreu parada cardíaca após injeção de potássio diretamente na veia em hospital público do Pará — Foto: Arquivo pessoal

Há mais de seis meses, os pais de uma criança de 2 anos aguardam por respostas sobre a morte do filho após dar entrada no hospital com diarreia e vômito. Houve aplicação "indevida de medicação na criança", em quantidade e de maneira incorreta, segundo especialista ouvida pelo g1 e a prefeitura de Oeiras do Pará (veja mais abaixo). O menino não resistiu e morreu.“Nós

 pedimos justiça. Ele não morreu por enfermidade, tiraram a vida dele no hospital", diz o pai, Egilson Serrão.

Ele teve paradas cardíacas após a aplicação de remédio na veia e a família enfrentou dificuldades na transferência para uma unidade de saúde maior, precisando inclusive fazer uma viagem de barco. No colo da mãe, “ele ficava olhando para cima e a lágrima começou a cair do rostinho dele”, disse o pai.

Arthur Martin Vieira Veiga, de 2 anos, morreu no hospital Santa Casa de Misericórdia, em Belém, quando já chegou com quadro de saúde grave. De acordo com a denúncia dos pais do menino, Egilson Serrão e Jéssica Vieira, estagiários do Hospital de Pequeno Porte de Oeiras do Pará injetaram potássio na veia da criança e, com isso, ela teve quadro de saúde agravado.

A prefeitura da cidade emitiu nota informando que houve aplicação indevida de medicação, que determinou afastamento da enfermeira que supervisionava a equipe e suspendeu contrato com curso profissionalizante, onde os estagiários estudavam. O caso é investigado sob sigilo.

De acordo com a advogada da família, Kelly Souza, o promotor do caso pediu a exumação do corpo da criança, mas o procedimento está demorando além do previsto.

"Esta demora pode trazer nenhuma informação por conta da decomposição dos restos mortais", diz a advogada.

A família aguarda o posicionamento do Ministério Público do Estado (MPPA) e espera que a promotoria denuncie os suspeitos e ouça os médicos. "Entendemos que a responsabilidades também é deles [dos médicos]", diz advogada. Um inquérito policial foi concluído e ainda está tramitando.

'"A família espera apenas que a Justiça seja mais célere, pois as provas existentes no processo são suficientes para comprovar o erro médico que vitimou Arthur", defende Kelly.

A Promotoria de Justiça de Oeiras do Pará informou que, no dia 12 de dezembro de 2023, após a conclusão do inquérito policial, encaminhou à Justiça um pedido de diligências, que inclui a coleta de depoimentos de testemunhas e a exumação do corpo da vítima.

Agora, o MPPA aguarda decisão do Judiciário para encaminhamento dos autos à autoridade policial para realização das diligências solicitadas.

“Nós pedimos justiça. Ele não morreu por enfermidade, tiraram a vida dele no hospital. Uma criança saudável. Por que não liberaram ele naquela noite? Seguraram para acontecer esse erro. O que aconteceu com ele, não queremos mais que aconteça. A maioria das pessoas que são transferidas daqui não voltam mais. A gente precisa de uma sala de UTI aqui na cidade que tem 35 mil habitantes”, indaga o pai da criança.

O Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) informou apenas que o processo está sob segredo de Justiça.

Entenda o caso

Hospital Municipal de Oeiras do Pará, na região do Baixo Tocantins. — Foto: Reprodução / TV Liberal

Hospital Municipal de Oeiras do Pará, na região do Baixo Tocantins. — Foto: Reprodução / TV Liberal

Oeiras do Pará é um município 33,8 mil no nordeste do Pará, distante cerca de 346,2 km de Belém. Por volta de 10h do dia 18 de setembro de 2023, Arthur deu entrada com vômito e diarreia no Hospital de Pequeno Porte, administrado pela Secretaria de Saúde Pública (Sespa) na cidade.

Na unidade de saúde, houve melhora no quadro de saúde e ele recebeu alta médica dois dias depois, no dia 20 de dezembro. Mas, quando a enfermeira foi retirar o acesso do braço da criança, Arthur teve episódio de vômito e a alta foi suspendida para que ficasse em observação por mais uma noite, segundo a família.

A mãe de Arthur disse que, por volta das 20h25, dois estagiários entraram na sala da pediatria para aplicar o medicamento e foi quando houve o agravamento do quadro de saúde.

“Ele estava deitado no meu braço, dei um abraço e um beijo, e falei ‘a mamãe te ama muito’”, relembra, emocionada, a mãe de Arthur, Jéssica Vieira.

“A estagiária foi aplicar o medicamento e a mão dela tremeu e perguntei ‘qual é esse medicamento e para que é?’, e ela falou que era para vômito e diarreia e informou que era potássio”, contou Jéssica.

Ela disse ainda que, como a estagiária estava tremendo para aplicar o medicamento, um segundo estagiário que estava junto com ela pegou a seringa e aplicou 10ml de potássio.

“Nesse momento foi subindo uma vermelhidão no braço dele [de Arthur] e faltando 2ml para acabar eu gritei ‘meu filho está ficando roxo’ e ele respondeu ‘teu filho não está roxo’. E aí peguei o Arthur da mão dele e comecei a gritar. Ele teve a primeira parada”.

Jéssica conta que correu para a enfermaria com Arthur no colo e lá perguntou novamente o que tinham dado para a criança e confirmaram que havia sido 10 ml de Potássio.

"A enfermeira começou a fazer manobra, não conseguiu, correu com ele para sala de reanimação e começaram a ligar para o médico, que não estava no hospital. Ele atendeu e chegou rápido e foi ver ele. Voltou comigo na sala de espera e disse ‘eu não entendo, porque a criança estava tão bem pra ter uma piora tão rápido’, e eu disse que eles deram 10ml de potássio e ele só informou que o estado dele era grave, que ficou 10 minutos sem oxigênio no cérebro e teve duas paradas cardíacas”

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Arthur antes da aplicação de potássio na veia, em hospital no Pará

Jéssica disse que entrou em contato com o marido, Egilson, que também chegou ao hospital.

“Eu já tinha ido [ao hospital], meu filho estava bem, brinquei com ele, falei ‘bora fugir daqui’, mas saí para levar o jantar para os meus pais e, meia hora depois, ela ligou dizendo que tinha dado uma ‘parada’ nele”, conta o pai de Arthur.

Após as duas paradas cardíacas, Arthur manteve as mãos fechadas, pés esticados e gemia, e chegou a babar, segundo os relatos da família.

Transferência, leito zero e mau tempo

Egilson foi até a prefeita da cidade, Gilma Drago Ribeiro (PMN), pedir ajuda na transferência do filho para um hospital com mais recursos. A cidade vizinha, Cametá, rejeitou por duas vezes a transferência de Arthur com a justificativa de que não havia leito.

“A outra possibilidade era levar para a Santa Casa, em Belém, com leito zero – previsto em Portaria federal que diz que os serviços têm de receber pacientes, mesmo sem condições, se não houver outra porta disponível para o encaminhamento -, utilizando helicóptero, mas não pôde por causa do mau tempo em Belém”, contou Egilson.

A solução foi ir de lancha até Brevesviagem que durou duas horas, para conseguir uma UTI Móvel de avião para Belém.

“A viagem toda de Breves ele foi no meu colo e falou duas vezes ‘mamãe’ pra mim”, lembra Jéssica.

Os pais ficaram preocupados de perder Arthur durante a viagem, mas estavam acompanhados de dois enfermeiros e o mesmo médico que ajudou na reanimação.

“Ele ficava olhando para cima. Falei com ele ‘papai tá aqui’ e a lágrima começou a cair do rostinho dele”, descreve o pai de Arthur.

A Prefeitura de Cametá foi procurada, mas não respondeu à solicitação do g1 sobre a recusa no atendimento da criança.

A Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa) informou que os profissionais envolvidos no atendimento foram afastados de suas atividades no hospital e que aguarda a conclusão do inquérito sobre o caso, para tomar as medidas cabíveis.

Estado gravíssimo ao chegar na Santa Casa

Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará - santa casa belem — Foto: Cristino Martins/Agência Pará

Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará - santa casa belem — Foto: Cristino Martins/Agência Pará

A família conseguiu chegar à Santa Casa às 19h do dia 21 de setembro de 2023. Jéssica contou à médica que a atendeu sobre o episódio do medicamento, mas, de acordo com ela, a profissional não levou em consideração.

“A médica me ignorou e disse que não tinha nada a ver a medicação. Eu disse que tinha registros dele meia hora antes da aplicação do remédio e não falaram mais nada, somente que o estado dele era gravíssimo”, lembra a mãe de Arthur.

Apesar da tentativa de internação e reversão do quadro, Arthur Martin Vieira Veiga, de 2 anos, teve uma nova parada cardíaca às 3h do dia 22 de setembro, não resistiu e morreu.

“Ele lutou e não resistiu”, disse o pai de Arthur.

A Santa Casa de Misericórdia do Pará confirmou que a criança deu entrada no estabelecimento, mas disse que não pode comentar o caso, já que está na esfera judicial.

Estagiários não seguiram prontuário, dizem pais

De acordo com os pais de Arthur, o médico prescreveu 1ml de potássio diluído em soro para aplicação intravenosa, porém, o aplicado foi 10ml de potássio, sem diluição.

“O prontuário foi rasurado onde estava a informação do potássio”, diz Jéssica.
Caso Arthur: pais apontam rasura no prontuário da criança — Foto: Arquivo pessoal

Caso Arthur: pais apontam rasura no prontuário da criança — Foto: Arquivo pessoal

Após a parada cardíaca de Arthur, o médico responsável descreveu que “às 20h25, paciente apresentou parada cardíaca após administração de medicamento” e descreveu o que foi feito para reanimar a criança.

Ele havia apontado ainda no prontuário que apresentava "mucoses monocoradas, reflexos, dores musculares e espasmos", e que foi feito contato para transferência, mas não havia leito disponível no momento.

Curso profissionalizante fechado

Os estagiários faziam formação em curso profissionalizante em Oeiras do Pará, que prometia aplicação técnica dentro do período de sete meses, segundo Egilson.

O pai conta que, com alguns meses de curso, os estagiários já iam para a prática e às vezes havia dez estudantes em uma noite no hospital.

“Pelo que sei, estagiários devem ter supervisão e não ficar aplicando medicamento sozinho. A enfermeira não estava na hora. Não é de hoje que acontece isso aqui, muitas pessoas perdem a vida por causa de erro. Queriam abafar o nosso caso, mas nós vamos à luta”, diz Egilson.

“A enfermeira que estava no turno foi afastada e perdeu o Coren. Ela pediu desculpas para gente, disse que tinha dois filhos e estava com medo de perder o emprego”

Depois do caso, o curso de enfermagem foi fechado, mas ainda exerce atividade nas cidades de Cametá e Curralinho. Os estagiários que teriam aplicado a medicação foram desligados.

Atualmente, não há estagiário trabalhando no Hospital de Pequeno Porte de Oeiras do Pará, de acordo com Egilson: “Os estagiários sumiram”, diz.

O Conselho Regional de Enfermagem (Coren-PA) disse ter determinado a abertura imediata de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) em relação à conduta da enfermeira.

"Este processo será minuciosamente analisado para avaliar o comportamento profissional e determinar o nível de responsabilidade diante dos supostos acontecimentos mencionados. Após ouvir os relatos da enfermeira em questão e, se aplicável, as testemunhas envolvidas, o Coren-PA tomará as devidas providências dentro de seu processo administrativo interno".

Corpo de Arthur não passou pelo IML

A história foi investigada pela polícia. O delegado de Oeiras do Pará foi até a Santa Casa de Misericórdia, em Belém, e questionou a médica que atendeu o paciente sobre terem liberado o corpo de Arthur sem passar pelo Instituto Médico Legal (IML) para a realização de perícias.

Ao g1a Polícia Civil informou que o inquérito que investigava o caso foi concluído no prazo legal e encaminhado à Justiça, mas não deu detalhes da conclusão da investigação.

Segundo o pai de Arthur, enfermeiras foram testemunhas à favor dos pais, e a médica da Santa Casa não quis atender a advogada da família e falou somente com o delegado.

Potássio na veia pode causar parada cardíaca

g1 procurou uma especialista para saber o que a aplicação de potássio na veia pode causar e se leva à morte. A pediatra e neonatologista, Tattiana Alvarez, diz que não é utilizado nenhuma quantidade de potássio puro de forma intravenosa, apenas diluído em soro.

Ela informa que o potássio é utilizado em casos de distúrbio metabólico, como hipocalemia, que é a baixa quantidade de potássio no organismo, ou na hidratação do paciente, mas a quantidade é baseada no peso.

“Não se aplica potássio puro na veia porque causa arritmia e parada cardíaca. Temos potássio no nosso corpo, mas não em doses elevadas. Quando precisamos utilizar, em especial na hidratação de crianças, fazemos um cálculo pelo peso do paciente para saber a quantidade que será diluída em soro fisiológico, e o tempo que será administrado, é o que chamamos de ‘soro basal’, mas nunca utilizamos ele puro na veia”.

A causa da morte da criança na certidão de óbito incluiu Sepse grave, acidose metabólica, diarreia e gastroenterite de origem infecciosa presumível e pneumonia bacteriana não especificada.

'Aplicação indevida de medicamento', diz prefeitura

A prefeitura de Oeiras do Pará divulgou uma nota afirmando que determinou afastamento da enfermeira e suspensão de contrato com o curso profissionalizante no hospital.

“Sobre o fato em si, segundo as informações, dois estagiários da Instituição RR Informática, sob a supervisão de uma enfermeira, aplicaram indevidamente uma medicação na criança quando esta estava em atendimento no nosso hospital.

Após o fato, determinei que a Secretaria de Saúde afastasse essa profissional e suspendesse imediatamente o estágio com a instituição RR Informática, além de encaminhar ofício ao Coren-PA, para que possa tomar as devidas providências necessárias e para a Polícia Civil para que investigue a conduta de casa um dos responsáveis por esse óbito”.

Prefeitura de Oeiras do Pará publicou nota nas redes sociais após morte da criança — Foto: Reprodução

Prefeitura de Oeiras do Pará publicou nota nas redes sociais após morte da criança — Foto: Reprodução

Procurada pelo g1, a prefeitura não se manifestou de forma direta à reportagem, nem informou se abrirá algum procedimento interno para apurar o caso.

A família também pretende pedir indenização na Vara Cívil à Prefeitura, que é responsável pelo Hospital de Pequeno Porte Oeiras do Pará.

O que diz o curso profissionalizante?

O RR Informática Cursos Profissionalizantes informou ao g1 que "a escola cumpriu todos os meios legais para o curso técnico em Oeiras, e os estudantes realizaram o curso normalmente durante dois anos e foram para campo de estágio exatamente no período que findou a parte teórica seguindo a grade curricular do curso técnico de enfermagem. Eles iniciaram em 2021 e foram para campo de estágio em 2023. Também cumprimos com todas as exigências de estágio do Conselho Municipal de Saúde dentro do convênio assinado"


https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2024/04/01/apos-6-meses-pais-permanecem-sem-respostas-sobre-morte-de-crianca-de-2-anos-em-hospital-no-pa-ele-lutou-e-nao-resistiu-diz-pai.ghtml

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