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CRIME
Em cinco sacos de lixo
O estranho caso entre o médico e a paciente que terminou em esquartejamento
PAULA MAGESTE, RONALD FREITAS E SOLANGE AZEVEDO
Álbum de família |
MARIA Casada há 20 anos, nutria uma paixão obsessiva por Farah |
Quando o porteiro João Augusto de Lima voltou do trabalho, às 18h30 da sexta-feira 24, seu jantar estava preparado, como de costume. Sobre o fogão, o prato de arroz, feijão e bife só precisava ser reaquecido. Era o tipo de atenção que a mulher, a dona-de-casa Maria do Carmo Alves de Lima, sempre lhe dispensara. Depois de jantar, João saiu de casa para ir ao culto da Igreja Pentecostal Novo Viver. 'Quando voltei, às 21h30, e não a encontrei, comecei a me preocupar', diz ele. Maria havia telefonado às 10 horas para informar que teria um dia cheio. Iria ao banco fazer um depósito, depois ao ginecologista e por último à clínica do médico Farah Jorge Farah, com quem 'estava fazendo uma dieta para emagrecer', segundo o relato do marido. Voltaria tarde.
Somente na madrugada da segunda-feira João viria a saber o que acontecera. Maria do Carmo não tinha ido ao banco nem ao ginecologista. Na sexta, enquanto ele jantava em casa, a 7 quilômetros dali, na clínica de Farah sua mulher era morta e esquartejada pelo médico. Por volta das 13 horas da sexta, ela apareceu na portaria do prédio em que Farah tem um apartamento no 26º andar, em Santana, bairro de classe média de São Paulo. Informada de que o médico não estava, resolveu aguardar em frente ao edifício. Pouco depois o telefone da portaria tocou. 'Pode deixar ela entrar. Fala para ficar aí na sala de espera', disse Farah ao porteiro de plantão, José Hamilton dos Santos. Maria do Carmo aguardou durante mais de três horas, até decidir visitar o médico em sua clínica, a 50 metros do prédio.
Vizinhos viram Maria do Carmo entrar na clínica de Farah no fim da tarde, para nunca mais sair. Sabe-se apenas que ela foi morta - mas não como. Os técnicos do Instituto Médico-Legal calculam que, devido ao estado do cadáver, levarão um mês para concluir a autópsia. Depois de matar a ex-amante, o cirurgião se dedicou a um trabalho macabro: dissecar o corpo para que fosse mais fácil retalhá-lo e se livrar dele. Depois de encher uma banheira com água sanitária, formol e um coquetel de substâncias químicas, abriu o cadáver do pescoço até o osso da bacia e retirou os órgãos internos. Eles não foram encontrados até agora, o que pode dificultar as investigações - com as vísceras, seria possível saber se ela foi dopada. Farah então repartiu o corpo em nove pedaços e deixou-os de molho, como os estudantes de ciências fazem com animais de laboratório que vão conservar dentro de um vidro. 'Um corpo dissecado perde até 60% do peso, por isso fica mais fácil de transportar e esconder', explica o diretor do IML, José Jarjura Júnior. Terminado o processo, que demora pelo menos oito horas, o médico depositou em cinco sacos de lixo os pedaços de Maria do Carmo. As pontas dos dedos das mãos e dos pés, que têm as impressões digitais, foram retiradas e guardadas num vidro, aparentemente para dificultar a identificação.
Foi desse modo que acabou o conturbado relacionamento entre dois personagens banais da cidade grande: uma dona-de-casa simplória, ex-empregada doméstica, acima do peso e obcecada por cremes e tratamentos de beleza; um médico mediano, dono de uma clínica modesta, que anda apoiado numa bengala e exibe uma calvície precoce. Duas pessoas de poucos amigos, dois estrangeiros na metrópole - ela, vinda do agreste de Pernambuco; ele, filho de imigrantes libaneses. Esta é uma tragédia sem glamour, cujos envolvidos poderiam um dia ter sido encontrados no restaurante a quilo da próxima esquina barulhenta, sem jamais chamar a atenção de nenhum passante.
Nilton Fukuda/Diário |
Maria do Carmo conheceu Farah há quatro anos, quando o procurou para corrigir a cicatriz de uma cirurgia feita havia alguns meses, pelo INSS, para a retirada de um cisto na virilha. Ela informou ao médico que extraiu o útero em 1985 e nunca teve filhos. Depois da cirurgia corretiva, Maria tornou-se presença assídua na clínica. Começou um tratamento para redução de peso - Farah também atuava como endocrinologista -, retirou um caroço de uma das mamas e depois fez mais uma pequena plástica para atenuar essa nova cicatriz. Àquela altura, a amizade dos dois já era percebida pela vizinhança. 'Eles andavam de braços dados pelas ruas do bairro como dois namorados', diz o vendedor Nertan Lima. Os problemas começaram quando a dona-de-casa descobriu que Farah recebia outras amigas em casa e na clínica.
'Essa Maria do Carmo está pegando no meu pé. Já estou de saco cheio', disse o médico a porteiros e funcionários do prédio. Havia algum tempo Maria do Carmo vinha fazendo marcação cerrada. Telefonava várias vezes ao dia, para a clínica e para o apartamento, às vezes gritava quando o médico dizia não poder recebê-la e passou a participar dos cultos da Igreja Adventista do Sétimo Dia do bairro de Moema, do outro lado da cidade, freqüentada pelos pais de Farah e eventualmente pelo próprio médico.
'Quando ele decidiu encerrar o relacionamento pessoal, ela passou a persegui-lo', diz o advogado de Farah, Roberto Podval, que já defendeu, entre outros nomes assíduos nos noticiários, o senador Luiz Estevão e o jornalista Pimenta Neves, assassino de Sandra Gomide, a ex-namorada. A defesa pretende sustentar a tese de que, exposto a uma perseguição sistemática e insuportável, Farah perdeu o controle e teve um surto psicótico. A marcação de Maria do Carmo, no entanto, estava longe de ser a maior dor de cabeça do médico. Acusado em vários processos cabeludos, iniciados entre 2000 e 2002, ele teria muito o que explicar à Justiça.
'Há casos de atentado violento ao pudor, abuso sexual e até estupro', diz José Paulo Scannapieco, advogado de um grupo de 11 mulheres que se dizem vítimas de Farah. 'Semi-acordadas, sob efeito de medicamentos, as pacientes sofriam abuso. Quando as vítimas entravam com ações judiciais, ele telefonava para chantagear. Dizia coisas do tipo: 'Se não retirar o processo, vou contar ao seu marido que a gente teve um caso'. Ele molestava e depois fazia ameaças.' O advogado diz que, para preservar a identidade das vítimas, os processos correm em regime de segredo de Justiça. Em dezembro, uma ex-paciente do cirurgião plástico que afirma ter sido vítima de abuso sexual telefonou para Maria do Carmo. 'Ela queria que minha irmã se juntasse a um grupo de pessoas que iria processar Farah', diz Elisa Alves. Maria, no entanto, não concordou. Segundo um dos investigadores que cuidam do caso, aí pode estar a chave para entender o tamanho da ira de Farah. Por que um senhor solteiro e desimpedido se descontrolaria a ponto de matar uma mulher loucamente apaixonada? Apenas porque ela não aceita uma separação? 'A hipótese mais provável é a de que Maria do Carmo estava ameaçando juntar-se às mulheres molestadas numa ação judicial', considera o agente. 'E, como conhecia bem Farah e havia privado de sua intimidade, o depoimento dela teria um peso importante no processo. O poder que ela tinha era o de abalar a reputação do ex-amante. E talvez estivesse usando esse poder.'
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Nilton fukuda/Diario | Otávio Dias/ÉPOCA |
ESQUARTEJAMENTO Delegado mostra porta-malas em que o cadáver foi escondido | REAÇÃO A entrada da clínica de Farah foi pichada por moradores da região |
A reputação de Farah já havia sofrido abalos na Vigilância Sanitária Estadual. O diretor de núcleo Roberto Wagner Barbirato tomou conhecimento das acusações ao receber cinco denúncias contra o cirurgião, em abril do ano passado. A função da Vigilância é zelar pela higiene e por condições adequadas de funcionamento das clínicas. Pelo menos no que se refere à alçada da fiscalização, as suspeitas foram comprovadas e uma blitz lacrou a sala de operações da clínica. 'Havia remédios vencidos e ele realizava procedimentos cirúrgicos em instalações inadequadas', diz Barbirato. O que mais causou estranheza aos fiscais, no entanto, foi a peculiaridade das instalações. 'A sala tinha espelhos laterais e no teto, parecia mais um motel que um ambulatório.' Farah não se conformou. Durante os 42 dias em que o recinto permaneceu fechado, ele visitou insistentemente a Vigilância, pedindo a anulação da multa de R$ 3.500 e a retirada do lacre. Dizia que era um homem doente, condenado à morte, e certa vez ameaçou se matar.
Entre 1999 e 2000 Farah sofreu quatro cirurgias para tratar de um câncer na região dorsal do tórax. Chegou a ser aconselhado a parar de trabalhar. Apesar da gravidade da doença, vinha negligenciando o tratamento. De acordo com o psiquiatra Antônio Hélio Guerra Filho, que o atendeu após a tragédia, 'esse comportamento pode indicar distúrbios psicológicos anteriores ao crime'. Farah não vinha tomando remédios para o câncer, mas a polícia encontrou em sua clínica três caixas de metadona, uma droga sintética derivada do ópio. De forte poder sedativo, o medicamento é usado no tratamento de dependência de heroína e morfina, substância utilizada para aliviar as dores do câncer. Os investigadores apuram também se Farah utilizou metadona para dopar pacientes.
Paulistano de 53 anos, solteiro e sem filhos, Farah é descrito por colegas e conhecidos como um médico aplicado, capaz de atender pacientes mesmo aos sábados e domingos. Membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica - dos 3.800 sócios, apenas 800 são titulares -, formou sua clientela no bairro de Santana, tradicional reduto conservador de classe média de São Paulo. Apesar da especialização costumeiramente associada a altos rendimentos, Farah não chegou a construir um vasto patrimônio. Tem um Daewoo sedã 1984 e uma réplica de Porsche montada sobre chassi de Fusca. É dono do imóvel em que moram seus pais, em outro bairro de classe média da capital paulista, do apartamento de 90 metros quadrados no edifício Boulevard Salete e da clínica em que Maria do Carmo foi esquartejada.
Otávio Dias/ÉPOCA |
MARIDO João ouviu as gravações, mas resiste a acreditar em traição |
Depois de cometido o crime, Farah voltou para casa. O sistema de segurança do prédio registra sua chegada às 19h30 e uma última saída às 23h30. Durante a madrugada, na clínica, o cirurgião esquartejou e dissecou o cadáver. Na manhã do sábado, Farah procurou agir com normalidade. Permaneceu na clínica pela manhã e, por volta do meio-dia, pediu ao pai que fosse buscá-lo. Colocou no porta-malas do carro dos pais, um Golf vermelho, cinco sacos de lixo - nos quais havia o que restou da ex-amante - e foi almoçar com eles. Passou o dia com os pais e, à noite, ao retornar ao prédio, transferiu os sacos para o porta-malas de seu Daewoo. No domingo, foi encontrado na clínica pelo marido de Maria do Carmo. Ele procurava a mulher e passou mais de uma hora esperando que Farah abrisse a porta eletrônica que dá acesso ao consultório. Junto com João Augusto, outros três pacientes aguardavam. Farah atendeu-o rapidamente, em meio a um chão molhado que cheirava a água sanitária. Com ar nervoso, disse que não tinha visto a paciente. 'Na saída ele estendeu um pano de chão na porta, para que eu enxugasse os sapatos e não molhasse o corredor', recorda-se Lima.
Poucas horas depois, o cirurgião voltou para casa. Então, o porteiro José Hamilton recebeu uma estranha ligação. Pelo interfone, Farah anunciava que iria se matar. José Hamilton diz que, após muita conversa, convenceu o médico a 'não cometer uma loucura'. Logo em seguida chegaram os familiares de Farah e depois um psiquiatra, Antônio Guerra Filho, que achou o paciente muito perturbado e mandou interná-lo. Confusamente, Farah havia confessado o crime e contado onde estava o cadáver. O advogado do médico, Roberto Podval, diz que seu cliente foi atacado por Maria do Carmo e matou-a em legítima defesa, mas não consegue se lembrar como. 'Farah se recorda de que ela avançou sobre ele com uma faca. Depois disso, deu um branco', explica.
A perda de memória do cirurgião e o impulso suicida dois dias depois do crime causam estranheza aos especialistas. 'A aparência de normalidade que ele demonstrou durante o fim de semana não é normal para casos de amnésia momentânea', analisa Antônio José Eça, professor de psicopatologia forense e autor de livros sobre o assunto. 'Foi um crime muito organizado. Quem perde a memória não consegue dissecar um cadáver durante horas.' O psicólogo Antonio de Pádua Serafim, do Núcleo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Hospital das Clínicas, de São Paulo, explica que uma pessoa comum levada a matar pelo desespero costuma seguir um padrão. 'Ela perde o controle e ataca enfurecidamente. Pode dar 40 facadas, por exemplo. Mas depois volta a si e chama a polícia', explica. Outro padrão, completamente diferente, é o do assassino frio, que planeja as ações em detalhe. 'Ele pode passar horas tentando ocultar o crime, mas tem plena consciência do que faz e lembra de tudo.'
A defesa de Farah, estruturada de modo a provar que não houve premeditação, tem enfrentado até agora alguns problemas. Primeiro, a polícia não encontrou a faca que Maria do Carmo teria usado para agredir o médico. No consultório, havia apenas bisturis. O cirurgião se dizia - e, pelo que indicam as provas, de fato era - perseguido por Maria do Carmo. Mas também afirmava o mesmo em relação às pacientes que o acusavam e aos fiscais que lacraram seu consultório. Alguns argumentos exagerados do advogado de defesa, Roberto Podval, também chamaram a atenção. Ele afirmou, sem mostrar provas, que a vítima telefonara 800 vezes no mesmo dia para o médico - o que significaria uma ligação a cada 108 segundos, durante 24 horas. E, para quem se dizia perseguido pela vítima, ele a tratava de maneira bastante amistosa, como indicam as gravações. Alice Alves, mãe da morta, conta que, na quarta-feira anterior ao crime, o médico telefonou para Maria do Carmo em sua casa para convidá-la a 'fazer uma aplicação'. Tudo indica que se referia à consulta da sexta-feira, que seria a última.
com reportagem de Eduardo Burckhardt, Tiago Cordeiro e Luciana Vicária
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